UM CONTO DE NATAL

Enroscou-se mais, como que a tentar prender o pouco calor que ainda detinha no corpo com o entrelaçar dos braços e das pernas. Felizmente não chovia, o que era sempre mais desconfortável, mas o frio cortava como um bisturi na mão de um experiente cirurgião. A noite já tinha caído. Por todo o lado a cidade inundava-se de luzes. Pessoas atarefadas, que corriam de um lado para o outro, porque era o último dia e não queriam deixar nada por fazer, não se davam conta dele. Era sempre assim durante todo o ano, porque haveria de ser diferente naquele dia só porque era Natal?

 

Com algum esforço ainda se conseguia recordar do Natal em família. A casa onde vivera era pobre, mas acolhedora. As necessidades constantes eram algo que não lhe tinham enchido a mente de criança, tão repleta de sonhos e fantasias. Recordava-se dos brinquedos que tivera, uns soldadinhos de plástico, um jeep ao qual faltava uma roda, entre outras coisas que via com formas incertas pelos olhos da memória.

 

Agora era um adolescente. Já não se recordava bem há quanto tempo vivia na rua. Sabia que não era muito, outros vagueavam sem rumo há bastante mais tempo, mas parecia-lhe uma eternidade, como se os tempos de infância com a mãe fossem uma outra vida ou um sonho que tivera em tempos. Vivia do que recolhia e das pequenas coisas que conseguia roubar aqui e ali, algo de que se sentia envergonhado, mas a que a necessidade obrigava.

 

Não conseguia ficar mais tempo parado. Apesar das dores que sentia nos pés devido aos sapatos demasiados grandes e rotos que calçava, teve de se levantar e começar a andar, era a única forma que conhecia de aquecer o corpo. O estômago já doía, desde manhã que não comia nada. Correra o boato na rua de que seria servido um jantar de Natal no abrigo para o povo da rua. Era curioso como as pessoas que viviam de forma desafogada se lembravam daqueles que nada têm, não pelas pessoas, pelos seres humanos, mas pela época em que viviam. Parecia que o inundar de luzes e a febre das compras as fazia ver algo que esqueciam durante o resto do ano, como se, ao estenderem a mão uma vez por ano, ficassem isentas de se preocupar com os infortunados do mundo.

 

Nas montras das lojas, todas enfeitadas com estrelas, Pais Natal e neve de spray, via coisas belas, coisas que nunca iria conhecer sem ser através de um vidro. O abrigo não era longe, teria só de andar mais um pouco para lá chegar. Na rua, algumas pessoas olhavam para ele de lado, outras chegavam mesmo a atravessar a estrada para não se cruzarem com ele. Não deu atenção, era assim todo o ano, porque havia de ser diferente naquele dia?

 

O abrigo estava cheio. “Não cabe mais ninguém!”, ouviu alguém dizer. A quantidade de gente que aguardava fora das portas pronunciava-lhe uma espera demasiado longa e uma quase certeza de que sairia dali sem nada. Afastou-se do local. Não estava desiludido, já tinha vindo sem grandes esperanças de conseguir fosse o que fosse.

 

Não tinha para onde ir. As portas fechavam-se, as lojas esvaziavam-se e todos se dirigiam para casa. «Se eu ao menos tivesse uma», pensou, mas isso era algo que pertencia ao passado.

 

A noite arrastou-se lentamente, e com ela descia a temperatura. O mercúrio dos velhos termómetros encolhia-se no fundo do seu pequeno tubo de vidro. Na cidade não caía neve apenas porque não havia nuvens, já que a temperatura ideal para ela tinha sido atingida.

 

Não sabia que horas eram. Sentia o corpo todo fustigado pelas dores provocadas pelo frio e pela fome. Incapaz de dar mais um passo, sentou-se no alpendre de uma velha casa. A pedra fria encostada às pernas já não o incomodava, estava com o corpo tão gelado que começava a ficar dormente. Deixou-se deslizar pela porta onde estava encostado até se deitar no chão. Como se de um cão se tratasse, enrolou-se todo ficando irreconhecivelmente pequeno. Não tinha mais nada a esperar, as ruas estavam desertas e não tinha mais energias para se mexer. Mais uma vez iria esperar pela passagem da noite sem saber se chegaria a ver novamente o sol.

 

Sentiu algo que lhe tocava, há quanto tempo estaria ali deitado? Não fazia ideia. Tinha adormecido, pelo menos era a sensação que tinha. Algo lhe voltava a tocar e lhe dava pequenos empurrões. Com algum esforço abriu os olhos e viu um cão. Parecia um pastor alemão, mas não tinha raça, era como ele, um tresmalhado perdido nas andanças do mundo. O cão abanava a cauda, parecia feliz por o encontrar. Era fantástico como o animal se sentia feliz por algo tão insignificante. O Farrusco, como ele o batizou de imediato, olhou para ele com uns olhos meigos e humildes durante uns segundos. Depois, sem pedir licença nem avisar, encostou-se a ele e deitou-se. De imediato sentiu o calor do corpo do animal. Sem qualquer obrigação, o Farrusco decidira partilhar a única coisa que lhe restava, o calor do seu pelo. Abraçou-o. Sentia o corpo do animal contra o seu. Os ossos estavam bem revestidos de carne, aquele não era um cão vadio qualquer, se é que era um cão vadio. Estava bem alimentado, mas não em demasia, como muitos dos que via serem passeados nas ruas. Não demorou a sentir o peso nos olhos a voltar, estava tão cansado, e agora que sentia aquela pequena fagulha de calor, não pôde controlar o sono e acabou por adormecer.

 

- Pantufas? Pantufas, onde estás? – Ouviu uma voz dizer. Parecia-lhe distante, mas, ao mesmo tempo, bastante perto. Era uma voz de mulher e, pelo tom, deveria pertencer a uma que já conhecera muitos anos neste mundo. - Estás aqui, meu maroto. – Ouviu a voz dizer, agora bem perto. – O que fazes na rua a esta hora com o frio que está? – Conseguia ouvir os pequenos passos caracterizados pelo lento arrastar dos pés. – Fizeste um amigo, Pantufas? – Dizia a voz, já ao lado dele. Abriu os olhos. Lentamente o vulto que se encontrava na sua frente tomou forma. Um rosto recheado de rugas e parcialmente iluminado pelas luzes da rua ostentava um terno sorriso. A idade não escondia a sua passagem naquela mulher de baixa estatura e corpo franzino. Nos ombros trazia um xaile preto que compunha um conjunto de roupa onde as cores não combinavam. A camisola surrada, com um pequeno buraco junto ao ombro direito, tombava levemente sobre a saia de fazenda em xadrez que cobria as pernas e as grossas meias de algodão que envolviam os pés enfiados num par de pantufas.

 

- Pobrezinho, aqui ao frio. – Disse ela. – Anda, deves estar com fome, de certeza. Hoje não é dia para se passar assim sozinho na rua.

 

Com esforço, levantou-se. O cão já estava de pé e saltitava à volta dele.

 

- Sabes, – Continuou ela – qualquer amigo do Pantufas é meu amigo também.

 

Com dificuldade, acompanhou aquele estranho par que, por alguma razão misteriosa, tinham decidido deitar-lhe uma mão.

 

A casa era pobre e evidenciava bem a passagem dos anos. A tinta, comida pelo sol, descascava em alguns pontos da parede. No interior, as mobílias eram poucas, e estavam cobertas com algum pó. O chão, de madeira seca, rangia a cada passo.

 

- De certeza que queres tomar um banho, não é verdade? – Perguntou ela.

 

- S…. Sim. – Respondeu. As palavras custavam a sair. Estava com o corpo tão entorpecido que até o mínimo movimento era feito em esforço. Ela acompanhou-o ao quarto-de-banho e deu-lhe uma toalha.

 

- Podes estar à vontade. – Disse ela. – Eu vou ver se te consigo arranjar outras roupas, que essas estão imundas.

 

- Obrigado. – Era a única palavra que conseguia dizer. Ela olhou para ele e sorriu.

 

– De nada, meu filho, de nada. – Respondeu.

 

Entrou no quarto-de-banho e fechou a porta, não sem antes o Pantufas entrar. Era estranho estar ali. Muitos anos se tinham passado desde a última vez que tinha estado assim numa casa. Abriu a velha torneira que rangeu. Os canos assobiavam com a passagem da água. Não teve de aguardar muito até começar a ver o vapor a inundar a banheira, a água estava quente. Tinha o corpo tão frio, que demorou imenso tempo para conseguir equilibrar a sua temperatura com a da água. Aquela senhora tinha-o recolhido apenas porque o cão, por algum motivo que só o animal conhecia, tinha engraçado com ele. Não deveria ser ao contrário? Não era suposto serem as pessoas a engraçarem com os cães e não os cães a engraçarem com as pessoas? Era mesmo estranho. Ainda não sabia o nome dela, mas também ainda não lhe tinha dito o dele. Só sabia o nome do cão. «Pantufas», pensou, e sorriu, enquanto abanava ligeiramente a cabeça. Aproveitou para saborear a água. Não queria estar ali muito tempo, embora o corpo lhe suplicasse sempre por mais um pouco. Não podia abusar da hospitalidade.

 

- Tens aqui umas roupas para vestires quando acabares. – Ouviu dizer do outro lado da porta. – Espero que te sirvam. Eram do meu falecido, que Deus lhe dê eterno descanso. O jantar está quase na mesa.

 

Na sala encontrou uma mesa posta para duas pessoas, um pinheiro onde luzes de várias cores piscavam em conjunto, refletindo nos enfeites em forma de bola e pinha que o adornavam. O presépio, com poucas figuras, mas onde não faltavam Maria, José, o menino, a vaca, o burro e o anjo, encontrava-se sobre uma pequena mesa ao lado de uma velha televisão.

 

- Só tinha uma posta. – Disse ela, quando começou a servir o jantar. – Por isso terá de ser meia para cada um. É pouco bacalhau, eu sei, mas era o que tinha. – E sorriu. Sorriu com sinceridade e sem qualquer pretensão ou vergonha, como se aquele facto lhe desse mesmo uma genuína vontade de rir. Aquela simplicidade, aquele aceitar da sua condição, aquele aproveitar na totalidade as poucas riquezas que a vida lhe dava era contagiante. Ele começou a sentir-se diferente, mais animado, sem remoer constantemente nos seus azares. 

Conforme a refeição foi andando, enquanto comia o bacalhau, as batatas cozidas e a hortaliça, a conversa também animou e, como dois velhos amigos que se encontram após muitos anos separados, contaram a sua vida, um ao outro, com todos os pormenores. Para encerrar, as rabanadas, que ela fizera e que ele considerou divinais, combinadas com a fatia de bolo-rei, pois desse havia pouco, completaram uma refeição como nunca se lembrava de ter tido.

- Agora, – Disse a Joaquina, que, no meio de tão animada conversa, já se tinha apresentado. – Como já é meia-noite, está na hora dos presentes. Vamos ver o que temos aqui. – E aproximou-se do pinheiro.

 

 Ele olhou para onde ela se dirigia e reparou nos três embrulhos que se encontravam debaixo da árvore. Tinham estado sempre ali? Quando olhara para o pinheiro anteriormente não se recordava de os ter visto.

 

- Para quem é este? – Perguntou ela, falando para si própria. – Aqui diz…. Pantufas. Olha, Pantufas, uma prenda para ti. – Disse ela para o cão. Este parecia perceber. Com as orelhas para baixo e o rabo a abanar, aproximou-se. Ela desembrulhou a prenda e deu-lhe o osso de borracha que se encontrava dentro. - Agora este é para… Joaquina. É meu! – Rasgou o papel e ele pode ver um conjunto de pares de meias. – Mesmo o que estava a precisar. – Disse ela. Depois de pousar as meias ao seu lado, pegou no terceiro embrulho e levantou-se. – E o último que é para… - Olhou para a palavra que se encontrava no papel durante alguns segundos, como se tivesse dificuldade em ler o que lá estava escrito. - Aqui diz: Ricardo. – Disse, olhando para ele. – Este é para ti.

 

Ele não queria prenda nenhuma, já não era suficiente o que ela tinha feito por ele? Não podia pedir mais nada. No entanto, foi incapaz de articular qualquer palavra para recusar a oferta. O olhar meigo dela e a forma como lhe estendia o embrulho impediam-no de o fazer. Retirou o papel com cuidado, não queria estragar nada. Vivera tantos anos a aproveitar tudo que nem sequer era capaz de rasgar um papel de embrulho. No interior encontrou um livro. Nunca tivera um. Sabia ler, era verdade, mas nunca lera nenhum. Podia ver pelo estado em que ele estava que já tinha bastantes anos. Pelo estado da lombada, podia ver que já fora lido mais do que uma vez. Olhou para a capa e leu o título em voz alta.

 

- Canção de Natal de Charles Dickens.

 

- Espero que gostes. – Disse ela.

 

Ele olhou para ela. Que palavras poderia usar para exprimir o que sentia? Era impossível reduzir à simples forma de uma frase aquilo que lhe enchia a alma naquele momento. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir qualquer som. Ela sorriu.

 

- E agora, está na hora de dormir. – Disse ela. Trouxe-lhe alguns cobertores e uma almofada. Ele deitou-se no sofá de tecido vermelho, que, como só o conhecera naquele dia, parecia-lhe que também estava enfeitado de acordo com a quadra festiva. O Pantufas deitou-se junto a ele, enroscado sobre o tapete que se encontrava em frente ao sofá.

 

- Queres que apague as luzes do pinheiro? – Perguntou a Joaquina.

 

- Não, deixe estar. – Respondeu ele. – Obrigado… Obrigado por tudo.

 

- De nada, meu filho, de nada. – Respondeu ela. – Dorme bem e até amanhã. – Disse, ao apagar as luzes.

 

- Até amanhã. – Respondeu ele. «Amanhã…», pensou. «Não sei o que me trará o dia de amanhã, mas uma coisa sei: nada nem ninguém alguma vez me poderá tirar esta noite de Natal em família».

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