Ghiojins - Conspiração Lunar [Transcrição do primeiro capítulo]
CAPÍTULO
UM
Já passava das quatro horas e o Shuttle das 15:45 horas, que fazia a ligação entre a Lua e a Terra, ainda não tinha chegado. O Carlos não estava preocupado, erros de horários eram “prato do dia” quando se tratava de viagens do calibre daquela. Bastavam pequenos pormenores para que logo surgisse um atraso. O pai tinha-lhe explicado tudo em detalhe, com todos os termos técnicos e científicos, mas ele não compreendera nada. Nunca lhe tinha dito, é claro. O pai falava daquilo tudo de uma forma tão cheia de cuidado e até de pompa que seria uma grande frustração para ele se lhe revelasse que a única coisa que entendia era que os atrasos eram normais.
Por mais de uma vez que estivera ali
num dos muitos terminais do espaço-porto a aguardar a chegada do pai. Desde que
ele entrara ao serviço da “International Agency for Space Research and
Development”, a IASRD, mais conhecida simplesmente por “Agência”, que se vira
obrigado a fazer constantes viagens por todo o planeta. Embora já estivesse algo
habituado às constantes idas e vindas do pai, a chegada de hoje tinha um sabor
especial. Pela primeira vez o pai vinha num Shuttle,
e, ainda por cima, num voo especial. Os Shuttles
mantinham a ligação entre a Terra e as estações orbitais, assim como com a
“velha” base lunar. E dizia “velha” porque uma nova base estava a ser
construída na face oculta da Lua… E era de lá que o pai vinha!
Enquanto aguardava, sentia o orgulho a
fervilhar dentro de si. O seu pai tinha sido seleccionado de entre, nada mais,
nada menos, do que vinte e três mil candidatos para integrar o pequeno grupo de
cinquenta elementos que seriam a linha da frente na instalação desta nova
estação de observação e estudo científico.
Os pormenores da base eram muito vagos
para ele. Segundo se recordava, teria algo a ver com comunicações, algo em que
o pai era considerado, a nível mundial, como um dos dez melhores e mais
engenhosos técnicos da actualidade.
«O meu pai é o chefe de comunicações
da nova base. Não é para menos… Ele é o melhor dos melhores!» pensou ele, «Quando
for grande também vou ser o melhor dos melhores… mas eu vou ser piloto!». Desde
que vira o primeiro Shuttle, aquela
máquina fantástica, um dos maiores êxitos de engenharia aeronáutica dos últimos
tempos, que sentia o desejo ardente de agarrar os comandos de uma nave daquelas
e partir para a aventura. Mas não eram só os grandes e majestosos Shuttles que o atraíam, todo o tipo de
aeronaves faziam ferver os seus instintos.
Enquanto estes pensamentos lhe percorriam
a mente, o Carlos deixava os olhos vaguearem pelo terminal e pelo que se
passava em seu redor. As salas de espera estavam equipadas com sofás corridos
com capacidade para seis pessoas cada, que, por acaso, até eram bastante
confortáveis. Por todo o lado pessoas iam e vinham, num movimento constante que
se tornava algo hipnótico. Viradas para o exterior, as gigantescas janelas de
vidro davam vista para as numerosas pistas de descolagem. O dia estava triste,
nem parecia que a Primavera estava para chegar. O céu estava encoberto e uma
chuva miudinha caía constantemente, enquanto soprava uma brisa gelada. Parecia
que o Inverno não queria ceder o seu lugar à nova estação. Dentro do terminal,
climatizado, parecia algo irreal a imagem que se tinha do exterior.
O espaço-porto era, das construções
da nova fase da conquista do espaço, a mais impressionante que ele alguma vez
vira. Por todo o lado havia painéis gigantescos a anunciar as chegadas e as
partidas dos Shuttles. Além destes,
também os aviões tradicionais faziam uso do espaço-porto, pois este funcionava
também como aeroporto. Oriundos um pouco de todo o mundo, os aviões, ou faziam
a sua chegada definitiva, ou uma mera escala, para novamente partirem para os
seus destinos.
A coordenação feita pelos
controladores de voo de todos estes aparelhos que constantemente chegavam e
partiam era uma obra monumental de organização. Até o mais céptico daqueles
que, no passado, se tinham oposto à construção daquela impressionante obra de
engenharia ficavam agora maravilhados e impressionados com a forma perfeita com
que tudo era controlado. É que, como não podia deixar de ser, e como todos os
grandes projectos que as entidades públicas se propõem levar a cabo, o espaço-porto,
até à sua finalização, fora alvo de ataques constantes dos cépticos que só viam
ali o desperdício do dinheiro dos contribuintes. Consideravam estes que, de
forma alguma, algo tão vasto e complexo, poderia alguma vez funcionar em pleno. O facto é que,
agora que tudo funcionava, essas vozes e esses rostos tinham desaparecido, já
não havia cépticos nem críticos, todos admiravam a máquina que coordenava toda
aquela parafernália constante de aviões e Shuttles
a chegar e a partir, máquina esta que funcionava, não como um relógio, pois os
atrasos eram normais, mas onde tudo era compensado e equilibrado segundo por
segundo, rota por rota. Com o tempo as pessoas foram-se habituando à
articulação constante dos voos, e, como em todas as obras daquela envergadura,
o passado era esquecido e o futuro enfrentado com serenidade, como se tudo
fosse simplesmente natural.
Mas o espaço-porto não era só
deslumbrante pela sua avançada tecnologia, pela “magia” dos seus controladores
aéreos, mas também pelo seu tamanho, que era astronómico! Ocupava uma área de
quilómetros, com as suas vinte e seis pistas e todos os edifícios de manutenção
e hangares... e, claro, como não podia deixar de ser, o próprio terminal em si. Construído com
base num esqueleto de aço, era todo envidraçado, com tantas salas de espera
como pistas que se encontravam no exterior. Dentro estava totalmente equipado,
desde restaurantes a lojas, a balcões de informação, livrarias, lojas de
equipamento fotográfico, etc. Era mais completo que um centro comercial. Tinha
até a maior sala de jogos do país! Infelizmente, não podia lá entrar. Na
entrada uma placa definia claramente: “proibida a entrada a menores de 16
anos”. O Carlos, com os seus meros 14 anos, teria que esperar mais dois para lá
poder entrar. «Dois anos!» pensou, «que raiva, tão perto e tão longe!»
Provavelmente, se o porteiro não fosse um exemplo de excesso de zelo
profissional, com a sua compleição física, superior à que seria de esperar para
a sua idade, não lhe seria difícil passar por um adolescente de 16 anos. O
problema era a frase que era dirigida a todos os que lá queriam entrar:
“bilhete de identidade, por favor”. Nem que fosse a uma velhinha de noventa
anos! Maldito porteiro! Tinha amigos mais velhos que lhe tinham descrito as
máquinas espectaculares que lá havia, e, uma vez, e só por uma vez, conseguira
apanhar o porteiro distraído e tinha dado uma rápida vista de olhos da porta. A
sala era enorme, com máquinas que iam desde as de jogos tradicionais 3D até aos
sofisticadíssimos simuladores de voo de realidade virtual. Era impressionante…
Muitos dos adolescentes que se viam a vaguear pelo espaço-porto estavam lá só
para jogar, queriam eles lá saber dos aviões e dos Shuttles…
Olhou para o relógio. Já passava das
quatro e vinte e continuava a aguardar. Desde que fora anunciado o atraso da
chegada que a mãe não parava de andar para trás e para a frente. Umas vezes lá
se tentava sentar, mas a agitação era tanta que se voltava a pôr de pé e lá ia
ela até ao fundo da sala e voltava. O Carlos não se preocupava muito com estas
coisas dos atrasos, mas a mãe era diferente. Ele já sabia, pela cabeça dela só
passavam as notícias dos acidentes, comparativamente raros, dado o número de
voos que se realizavam. Por muito que ele, e até mesmo o pai, tentassem, não
lhe conseguiam meter na cabeça que estes Shuttles
eram de uma nova geração, que não tinham nada a ver com os primeiros. A
diferença era gritante, em todos os aspectos, e em especial na segurança. Mas
ela era teimosa, que se havia de fazer? O Carlos já desistira. «Mais umas
chegadas assim» pensou, «e ela já rói os dedos até ao osso, porque unhas já não
tem…» Mas não era só a paranóia e o medo obsessivo dos acidentes que a punham
assim tão nervosa. Um ano era muito tempo! O pai já estava naquela missão à perto
de quatorze meses… Era a mais longa missão em que alguma vez estivera
envolvido… e, pelo que parecia, a mais importante e a mais secreta. Mas o tempo
tinha passado, a vida tinha decorrido dia-a-dia e, agora, lá estava ele, à
espera do pai… ou seria que não… no fundo sentia-se mal consigo próprio, um
ano… não! Mais do que um ano, sem ver o pai e não tinha a certeza se o que mais
ansiava era vê-lo ou os tão falados, debatidos, discutidos, sabia lá o quê
mais, Ghiojins. Pois era verdade, enquanto a mãe era obsessiva no medo do
atraso, ele era obsessivo na vontade de ver um Ghiojin… A velha discussão
“estamos sozinhos no universo”, “não estamos sozinhos no universo” terminara
uns anos atrás… Curioso, já nem se lembrava bem quando se dera o primeiro
contacto com essa nova e misteriosa espécie, os Ghiojins. Como quase toda a
população do planeta, ele nunca tinha visto nenhum em carne e osso. Já tinha
visto fotografias em jornais e revistas e filmagens nos noticiários… mas ao
vivo... nunca. Essa era a obsessão dele, até tinha uma foto recortada de uma
revista na carteira. Esperar pelo pai ou não, era secundário, ele dissera-lhe
que havia Ghiojins a participar naquela missão e que, muito provavelmente,
viriam com ele aquando do regresso à Terra, e isso era o que o interessava
acima de tudo. Sentia-se estranho a pensar assim. Sentia que, no fundo, estava
a traí-lo.
Tentou afastar estes pensamentos da
cabeça e pensar no ano que passara na ausência dele. Tinha-lhe custado bem mais
do que pensara, mas, ao menos, toda a gente o conhecia na escola. O pai tinha
aparecido na televisão e todos lhe faziam perguntas sobre a missão. Ele
respondia que ele lhe tinha dito que não podia revelar nenhum dos pormenores
que lhe contara e que jurara que, nem que o torturassem, não diria coisa
alguma. Felizmente nunca ninguém chegou a saber que ele não fazia a mínima
ideia de nenhum dos pormenores da missão, nem sequer do que se tratava.
Pensando bem no assunto, e voltando
aos Ghiojins, o que era inevitável, tudo o que os rodeava era curioso. Pelo que
se recordava, a Terra fora contactada por uma sonda espacial pertencente aos
Ghiojins que, segundo foi anunciado publicamente, trazia uma mensagem de paz e
um pedido oficial de ajuda e apoio, pois a sobrevivência dos Ghiojins e de toda
a vida do seu planeta estava em
risco. Por muito que se falasse, anunciasse e publicitasse
sobre estes seres, os contornos dessa ajuda nunca tinham sido devidamente
explicados. Nem mesmo qual o motivo que estaria a levar aquela espécie à
extinção.
O curioso era que, agora, passados cinco
ou seis anos desde o primeiro contacto, os Ghiojins, segundo constava, já
estavam em fase de recuperação e começavam a retribuir a ajuda com tecnologia
que complementava a nossa, provocando um avanço na civilização humana tão rápido
e positivo como nunca até ali se vira.
Mesmo com a certeza de uma relação
pacífica, e depois dos exaustivos exames médicos realizados por ambas as
partes, exames estes com resultados surpreendentes de compatibilidade entre
ambas as espécies, mesmo assim, os Ghiojins não se viam. Seria de esperar
encontrar seres destes nas ruas das cidades, mas não, tal não acontecia. A
criação de programas de integração destas criaturas na nossa sociedade, e
vice-versa, era assim essencial. Era inevitável que elas passassem a fazer
parte do presente e do futuro da humanidade, mas nada disso acontecia.
Permaneciam guardados em edifícios de alta segurança e só vinham à Terra em
casos de extrema necessidade, o que era estranho… mais do que estranho. Curioso
também era não se saber o que se passaria no sentido inverso, sobre os humanos
que iam a Ghioj, o planeta dos Ghiojins. Teriam o mesmo tratamento?
Tirou a fotografia que trazia na
carteira. Recortara-a de uma das primeiras reportagens que tinham sido
publicadas e guardara-a sempre desde então. Olhou para o aspecto do Ghiojin.
Não havia dúvidas de que eram diferentes; mais uma razão para se tentar uma
integração progressiva deles na nossa sociedade, para evitar as típicas e
características reacções de racismo da espécie humana. Eram verdes, de um verde
carregado, faziam lembrar as costas de um crocodilo, mas não tinham antenas,
como os extraterrestres que povoavam o imaginário antigo. Assim, numa primeira
vista, e embora as fotos não ajudassem muito, pareciam quase uma mistura de
macaco com lagarto, com braços compridos e pele grossa algo escamosa. A cauda é
que era estranha, ou melhor, as caudas, pois tinham duas, quase como a língua
bífida de uma serpente.
Enquanto estes pensamentos o
absorviam por completo, a mãe aproximou-se e deu-lhe um abanão.
- Não ouviste? – Disse ela num tom
de ansiedade extrema. – O Shuttle… o
teu pai está a chegar! – O Carlos olhou para ela. Parecia uma criança pequena
que queria ir ao quarto de banho, não conseguia estar quieta, saltava de um pé
para o outro constantemente e notava-se que a lentidão dele em se pôr de pé
estava a irritá-la. - Vamos para a porta. – Disse ela, com um sorriso na boca e
uma lágrima no canto do olho. – Corre!
Aguardaram a aterragem do Shuttle. Através das enormes janelas
podiam-no ver a taxiar na pista para colocar a porta de saída em frente a um
dos muitos túneis extensíveis que davam acesso às áreas de desembarque. Mesmo
daquela distância o Carlos podia sentir o poder, a vibração dos três motores de
plasma que equipavam a nave. Agora os Shuttles
já tinham propulsão suficiente para superar a força da gravidade da Terra sem
necessitarem da ajuda dos velhos foguetões aos quais costumavam partir
acoplados. Funcionavam quase como um avião. Levantavam voo, contrariavam a gravidade
da Terra com a maior das facilidades e depois voltavam e aterravam suavemente,
como uma pena, o que era extraordinário para uma máquina daquela dimensão e
tonelagem. Estes novos motores eram já fruto da colaboração com os Ghiojins em
termos de tecnologia… o que mais se seguiria?
Continuaram a aguardar. O Shuttle já estava completamente parado
e, embora não conseguissem ver, tinham a certeza que os seus passageiros já se
encontravam a atravessar o túnel extensível. Teriam que aguardar o tempo usual das
imposições burocráticas, até que, da porta do terminal, eles começassem a sair.
Alguns dos terminais do espaço-porto eram especiais, tinham o que, normalmente,
se designava por saída VIP. A “sala das burocracias”, como era conhecida, tinha
duas saídas: uma para os passageiros normais, que os levava ao interior do
espaço-porto para junto da população geral, e outra para o pessoal mais
importante, esta última vedada e à qual só tinham acesso certas entidades e
familiares dos passageiros que por ela saíam. O Carlos e a mãe aguardavam junto
a essa porta. Sendo familiares de um alto funcionário da Agência Espacial,
tinham livre-trânsito para essas saídas. O Carlos ardia de impaciência, de
certeza que o pai sairia brevemente por aquela porta. Melhor ainda, iria sair
acompanhado por Ghiojins! De certeza que os Ghiojins iam passar por ali, era a
porta dos VIPs, do corpo diplomático, dos altos funcionários da Agência
Espacial, e também tinha que ser dos Ghiojins.
Mal começaram a sair os primeiros
passageiros pela porta oficialmente designada como “exclusiva”, que os levava
directamente a um parque de estacionamento privativo, o Carlos começou a
esticar o pescoço e a tentar espreitar por um lado e por outro à procura dos
Ghiojins. Mas os homens e as mulheres passavam… e passavam… e só passavam
humanos! «Onde estavam os Ghiojins? Eles deviam vir também…» pensou.
Ele viu a última pessoa a sair.
Aguardou um pouco, mas mais ninguém saiu. Um funcionário do espaço-porto, um
homem forte e de cabelo grisalho, trancou as portas e olhou para o Carlos.
- Já passaram todos rapaz… - Disse, e,
com um sorriso, afastou-se para continuar o seu serviço. O Carlos permaneceu de
pé junto ao cordão que delimitava o espaço da saída. Não era possível, nem um,
nem mesmo um para amostra, que desilusão… tanto tempo à espera… Enquanto estes
pensamentos se repetiam na sua mente, sentiu um forte apertão no braço direito
que, para além de o tirar do torpor em que se encontrava, quase lhe arrancava
um grito de dor. Olhou para o lado, a mãe apertava-lhe o braço com força, não
por maldade, mas de desespero, ele podia ver-lhe nos olhos.
- O teu pai não veio no Shuttle!
O Carlos ficou silencioso.
- Estás a ouvir o que te estou a
dizer? – Perguntou a mãe. Fazia um enorme esforço para não chorar, mas sem sucesso.
– O teu pai não veio, eu não o vi… Viste-o?
Podia ele dizer à mãe que trinta
segundos depois de os passageiros começarem a sair pela porta exclusiva ele já
se tinha esquecido completamente do pai e que ficara obcecado por ver um
Ghiojin? Ela jamais compreenderia, ela nunca tinha demonstrado interesse nenhum
pelos Ghiojins… Mas era verdade, o pai não estava lá, e ele nem se tinha dado
conta.
A mãe andava de um lado para o
outro, as lágrimas corriam-lhe pela face, agora vermelha de raiva.
- Não é possível! Não pode ser! –
Falava sozinha, com a voz embargada pelas lágrimas. – Ele tinha que ter
chegado! Ele tinha que ter chegado! - Parou e olhou para o Carlos. – Um ano à
espera...
O Carlos estava destroçado, como
pudera esquecer o pai? Como podia ajudar a mãe?
- Mãe, tem calma. – Disse ele –
vamos saber o que se passa, provavelmente houve algum engano… - Tentava sorrir
para animar a mãe mas os seus esforços eram infrutíferos. - Olha, se calhar ele
vem noutro Shuttle e isto é tudo só
uma grande confusão.
A mãe olhou para o seu rapaz. Que
grande que estava, e que parecido era com o pai. Olhou-o nos olhos. Tinha os
olhos do pai, aí não havia dúvidas. Conseguiu-se acalmar um pouco fechando os seus
e tentando acreditar com todas as fibras do seu corpo naquilo que o filho
sugeria. Pegou num lenço e limpou as lágrimas. - Tens razão filho. – Disse ela,
por fim. - Mas onde é que vamos perguntar? Quem nos poderá ajudar?
- Olha, para que servem os balcões
de informação? – Disse o Carlos, procurando distraí-la dos pensamentos que a
perturbavam. – Para dar informações, é claro! Anda lá.
Dirigiram-se para um dos muitos
balcões informativos que se encontravam espalhados pelo terminal. O
espaço-porto dividia-se em zonas definidas por cores e, como naquele momento se
encontravam na zona azul, aproximaram-se do balcão azul. A estrutura do módulo
que constituía o balcão tinha um formato arredondado, não tendo uma verdadeira
frente. Isto permitia que o funcionário, ou funcionária, como era este o caso,
pudesse girar em 360º de forma a poder atender qualquer solicitação de imediato
independentemente do ponto de chegada de quem solicitava ajuda. A estrutura
permitia também que ela fosse acompanhada no seu movimento giratório pelo
computador que utilizava. Este limitava-se a um finíssimo monitor coberto com
uma película revestida de sensores microscópicos, o que a libertava, na maior
parte dos casos, da utilização de um teclado. Sempre que o mesmo era
necessário, ela tocava num ponto do ecrã e este saía de debaixo do balcão, ficando
em frente do monitor apoiado por dois braços metálicos que, quando deixasse de
ser necessário, o recolhiam. Além deste equipamento, usava um auricular
acoplado a um microfone que substituíam o velho e bolorento telefone de fio.
Quando se aproximaram, a operadora
encontrava-se ligeiramente de costas e a falar ao microfone. Antes que o Carlos
dissesse alguma coisa ela, que o tinha visto pelo canto do olho, sorriu e, com
um gesto, pediu para ele aguardar. Por cima do balcão estavam vários panfletos.
A publicidade aos prazeres das pousadas orbitais estava na moda. Segundo
constava, os mais procurados eram os salões de massagem em gravidade zero.
A operadora girou sobre a sua
cadeira rotativa e, encarando ambos, perguntou:
- Boa tarde, em que lhes posso ser
útil?
A rapariga, porque era uma rapariga,
pensou o Carlos, devia ter pouco mais de vinte anos. Parecia que tinha saído
directamente de um dos muitos placares publicitários que se viam por toda a
parte, com o seu cabelo preto azeitona e os seus olhos azuis claro, como o céu
num dia de Verão. Ela sorria… sorria com uns dentes brancos que pareciam
acentuar o brilho dos olhos. Instintivamente, o Carlos sorriu também. Estava
algo hipnotizado. A beleza pura daquele rosto inspirava nele uma calma e um
estranho sentimento de bem-estar.
- Boa tarde. – Disse a mãe do
Carlos, trazendo-o de volta à Terra. – Gostaria de saber onde me tenho de
dirigir para saber por que é que o meu marido não chegou no Shuttle das 15:45 horas.
- Ora bem. - Respondeu a rapariga. -
Esse voo está fora dos horários normais. Aguarde-me um momento, por favor, que
eu vou ver se tenho acesso a esse processo.
O Carlos afastou-se do ponto onde
estava a mãe, sem se desencostar do balcão, para tentar ver o monitor e o que a
operadora estava a fazer. Pela velocidade com que tocava nos múltiplos pontos
no ecrã, o Carlos podia ver que ela, embora ainda tão jovem, já possuía uma
grande experiência com aquela tecnologia.
- Ora muito bem… - Dizia ela, quase
como se estivesse a falar sozinha. - Temos aqui os dados do voo… tudo normal…
chegou atrasado… tudo normal… agora vamos verificar se temos acesso à lista de
passageiros…
- A lista? – Disse a mãe do Carlos,
começando a ficar um pouco agitada. – Olhe lá, dona… - Fez uma pausa para olhar
para a pequena placa identificativa que a operadora tinha ao peito. – Dona Ana
Saraiva, eu sei que ele vem na lista, eu quero é saber porque é que não chegou
cá! – O nervosismo sentia-se nas palavras, as mãos suavam, por ela as esfregar
constantemente uma na outra.
- Vamos com calma, minha senhora. –
Disse a operadora, sempre sorridente. – Espere um momento, por favor, que já
vai ficar tudo explicado, só mais um pouquinho e… cá está. Diga-me lá o nome do
seu marido.
- Jorge Antunes.
- Tem que ser o nome completo,
desculpe.
- Jorge Alberto de Sousa Antunes. –
Respondeu a mãe do Carlos, cada vez mais irritada.
- Não existe nenhuma pessoa com esse
nome na lista dos passageiros. – Disse a operadora, com o à vontade normal com
que costumava atender todos os clientes.
- O quê?!!! – Gritou a mãe do
Carlos. – Não existe!!! – Agarrava as beiras do balcão como se a sua vida
dependesse disso. – Você tem a certeza que está a ver isso bem?
- Sinto muito, mas, neste voo, não
está. – Respondeu a sempre sorridente operadora.
- E noutro qualquer, pode ter havido
uma troca, não sei! – O desespero tomava conta da mãe. – Procure, procure tudo
pelo nome, por favor.
- Está bem, eu vou procurar. –
Respondeu a operadora. – Mas vai ter que se acalmar porque isto leva algum
tempo.
Tocou no monitor e novamente o
teclado surgiu à sua frente. Digitou o nome completo do pai do Carlos. Da
posição em que se encontrava, ele podia ver todos os nomes a serem escritos, um
por um. Depois o monitor ficou negro só com uma mensagem a piscar com as palavras
“a procurar”
- Ele disse que vinha. – Falava a
mãe do Carlos para ela própria, agora de costas para o balcão e apoiada nele. –
Ele disse que vinha… ele prometeu que vinha…
- Lamento imenso, minha senhora. –
Disse a operadora, agora já sem o sorriso. O Carlos podia ver que ela também já
começava a ficar desalentada. A tristeza e o desespero da mãe tinham-lhe tocado
o coração.
A mãe do Carlos virou-se subitamente
para ela, levantando uma mão, que tremia, em direcção à cabeça.
- E o amigo dele, o... como é que ele
se chamava, filho? – Perguntou, virando-se para o Carlos. – Tu lembras-te, o do
bigode...
- Ó mãe, sei lá, são tantos, cada um
com o seu nome, até nomes de cidades tinham…
- É isso! – Exclamou a mãe, com um
brilho nos olhos. – O Dr. Coimbra, o médico. Veja, veja por favor!
Mais uma vez o teclado chegou à
frente.
- Só por Coimbra vai ser difícil. –
Disse a operadora. – Não se lembra de mais nenhum nome?
- Não, não… – Disse a mãe do Carlos,
com a efervescência de uma criança que vai receber um brinquedo novo. – Procure
todos os Coimbras, não devem ser assim tantos! Por favor…
- Ok, ok! – Respondeu a operadora,
cheia de vontade de ajudar mas com o pressentimento de que tudo era em vão.
Mais uma vez o monitor ficou preto.
Mais uma vez dizia “a procurar”. Pouco tempo depois apareceram os resultados.
- Tenho aqui uma pessoa com o apelido
de Coimbra. - Disse a operadora. – Mas…
- É ele, é ele! – Gritou a mãe,
quase querendo saltar para dentro do balcão.
- Mas… – Continuou ela. – O nome que
aqui tenho é Daniela Coimbra.
A mãe do Carlos ficou petrificada. «Uma
mulher?» pensou, «o meu marido não me falou de mulher nenhuma. E o Dr. do
bigode?»
- E nem sequer vem na lista do
“Magalhães”, o Shuttle das 15:45
horas. Ainda está para chegar.
- Tem a certeza que não tem mais
ninguém pelo nome de Coimbra? - Perguntou a mãe, começando a demonstrar o
cansaço da carga nervosa que tinha suportado nas últimas horas.
- Lamento, mas não. – Respondeu a operadora,
rodando o monitor de forma a permitir à mãe do Carlos olhar para ele.
Mostrou-lhe a lista completa dos passageiros do voo das 15:45 horas. Estava
certo, era o Magalhães, o Shuttle em
que o marido deveria ter vindo. Já não estava a entender nada. O marido não
vinha e o amigo também não. Nenhum dos nomes que constavam da lista lhe eram
familiares. Sentiu a cabeça a andar à roda. A dor tornava-se insuportável. A
ânsia da espera tinha sido avassaladora. Os nervos estavam à flor da pele e
sentia-se atordoada. Começou a ficar pálida, as pernas cederam e ela deixou-se
escorregar com as costas encostadas ao balcão até se sentar no chão.
- Ele prometeu… ele disse que vinha…
que vinha de vez. – Falava sozinha. – Já não aguento mais esta vida…
- A senhora sente-se bem? -
Perguntou a operadora, saindo do balcão e baixando-se ao pé dela. - Vou já
chamar o enfermeiro de serviço. – Voltou a entrar no balcão e ligou para os
serviços de assistência médica do espaço-porto a solicitar apoio imediato.
- Não é possível... não é
possível... – Eram as únicas palavras que saíam da boca da mãe do Carlos. Os
pensamentos estavam baralhados. Tudo estava turvo e confuso. As vozes que ouvia
ecoavam dentro da cabeça e pareciam estar longe. As imagens terríveis que
sempre a assaltavam voltavam em força, a imaginação desenhava-lhe os piores
cenários…
A operadora estava abaixada ao lado
dela, segurando-lhe a mão, quando o enfermeiro de serviço chegou. Depois de ser
informado de forma breve sobre o que se passava, tirou da sua mala uma lata de
reactivador nervoso, um novo medicamento em forma líquida para situações
extremas como aquela, que acalmava os nervos e reanimava o paciente.
- Agora só tem que repousar uns
cinco ou dez minutos. – Disse ele. – Depois vai-se sentir como nova, não se
preocupe.
O enfermeiro, um indivíduo corpulento,
que não conseguia esconder as suas passagens frequentes pelo ginásio, pegou na
mãe do Carlos ao colo como se ela não tivesse peso e deitou-a num dos sofás da
sala de espera. Pondo-se de cócoras, olhou-a nos olhos.
- Agora repouse que tudo se resolve.
– Disse-lhe, com uma voz grave, mas ao mesmo tempo meiga e aveludada, uma voz
tranquilizadora.
A mãe do Carlos agarrou-lhe a gola do
casaco quando ele se ia a levantar.
- Você não entende… ele prometeu. –
Disse ela, meia atordoada.
Retirando suavemente a mão dela do
seu casaco, respondeu:
- Chiu. Agora é preciso é descansar.
Se lhe apetecer dormir, durma. Não se preocupe, é normal e é bom sinal.
Enquanto o enfermeiro tratava da
mãe, a operadora permaneceu junto do Carlos, apoiando a mão esquerda sobre o ombro
esquerdo dele.
- Não te preocupes. – Disse ela,
tocada pela tristeza e pelo desespero que via à sua frente. – Ela vai ficar
bem.
- E os Ghiojins? – Perguntou o
Carlos. Sim, com tanto rebuliço de listas de passageiros, ninguém lhe dissera
se tinham vindo Ghiojins ou não no Shuttle.
- Como? – Perguntou a operadora,
olhando para ele com um ar de admiração que quase o fez corar. – A tua mãe à
beira de um colapso nervoso e tu perguntas-me por homenzinhos verdes?
- Ande lá. – Disse o Carlos. – Veja
lá se veio algum…
- Nem preciso de ver, rapaz. –
Respondeu ela. – Eles nunca vêm para aqui, nem sequer nos voos especiais como
este. Não te preocupes, aqui nunca vais encontrar os homenzinhos verdes.
Momentos depois, quando a mãe do
Carlos já se encontrava mais calma, a operadora aproximou-se dela.
- A senhora não se lembra de mais
nenhum nome que eu possa procurar? - Perguntou ela. A vontade de ajudar era
maior do que a capacidade.
- Não, não me lembro de mais
ninguém. – Respondeu a mãe do Carlos, com um longo suspiro. - Ele vinha com
mais dois amigos, mas nunca cheguei a saber os seus nomes, nem nunca os vi. Os
restantes eram só trabalhadores. Não havia mais nenhum elemento do estatuto
dele.
- Sinto muito, minha senhora. Se
calhar seria melhor se se dirigisse à entidade para a qual ele trabalha para
saber o que se está a passar. – Disse a operadora, com um sorriso meio forçado.
- Se calhar é melhor. – Respondeu a
mãe do Carlos, com os olhos a fixar o chão. – Acho melhor descansar um pouco
agora. Muito obrigada e desculpe o trabalho que lhe dei.
- Não tem de quê. Estamos aqui para
ajudar… – Respondeu a operadora. – Embora, por vezes, sem sucesso. – Disse, ao
se afastar, quando eles já a não podiam ouvir. Tinha ficado desanimada, o dia
estava-lhe a correr tão bem e aquela situação tinha-lhe provocado um aperto no
coração que custava a desvanecer. Aquela mulher lembrava-lhe a sua mãe, sete
anos antes, quando o pai dela tivera um acidente fatal de viação. Uma data que
nunca esqueceria… 12 de Novembro de 2009… Tentou afastar esses pensamentos.
Tinha muito que fazer, o dia ainda ia a meio e no final esperava-a um jantar
com o Duarte… o Duarte dos olhos verdes e dos dedos meigos… Estaria apaixonada?
– «Ná!» pensou, «Não sou dessas…»
O Carlos aguardou que a mãe repousasse.
Seguindo o conselho do enfermeiro, dormiu um pouco, o que a acalmou. O remédio
fora eficaz e ela, após acordar, já se sentia um pouco melhor.
Levantou-se, pegou no seu casaco de
malha que lhe servia de almofada, olhou em redor para toda aquela magnitude e
sentiu uma repugnância como não sentia há muito tempo. O mundo era cruel.
- Vamos filho. – Disse, pondo a mão
na cabeça do Carlos e fazendo-lhe um carinho. – Vamos para casa que aqui nada
mais nos espera.
Dirigiram-se para o carro que tinham
deixado no fundo do parque de estacionamento, dado que este se encontrava
praticamente cheio quando tinham chegado. A carrinha vermelha não era
propriamente um último modelo, mas eles gostavam bastante dela. Já tinham dado
bons passeios nela, os três. A mãe destrancou as portas e ficou a olhar para o
carro enquanto o Carlos entrava. Uma série de boas memórias de tempos idos
passaram-lhe pela mente. Era verdade, aquela carrinha estava cheia de boas
memórias.
Entrou e sentou-se ao volante. O
Carlos já tinha o cinto posto e estava pronto para partir.
- Estás bem, mãe? – Perguntou.
- Estou. – Respondeu ela. – Vamos
para casa, neste momento é o único sítio onde quero estar.
Lentamente arrancaram e seguiram pela
estrada que os levaria de volta a casa, naquela infrutífera tarde de sábado.
A viagem até casa era curta, moravam
a vinte e cinco quilómetros do espaço-porto, numa vila nos arredores de Évora.
O Carlos olhava pela janela. O dia terminava e a paisagem já brilhava com as
cores douradas do pôr-do-sol.
- Agora só segunda-feira… – Disse,
meio para si próprio.
- Parece que sim… - Respondeu a mãe,
meia alheia ao que a rodeava. Conduzia quase por reflexo, já conhecia aquele
caminho com os olhos fechados.
A única paragem que fizeram foi para
jantar num dos muitos restaurantes que se encontravam ao longo da estrada.
Comeram o prato do dia, para ser mais rápido, e, após uma refeição em silêncio,
reiniciaram a viagem para casa. Ambos estavam desejosos de lá chegar.
O Carlos sentia-se cansado. Embora
não se tivesse apercebido na altura, também tinha sido afectado por tudo o que
se tinha passado. Tomou um longo duche para refrescar, pouco depois de chegar a
casa e, de seguida, decidiu ir para a cama, embora ainda fosse relativamente
cedo. A mãe foi dar-lhe um beijo de boa-noite. Precisava de estar ali um pouco
sentada na beira da cama, nem que fosse só a olhar para o seu rapaz. Era o que
de mais valioso tinha, era a sua vida e o seu conforto.
- Ó mãe. - Disse o Carlos. –
Segunda-feira vamos a Lisboa?
- Ainda não pensei nisso, mas acho
que sim… - Respondeu a mãe. Tinha a cabeça em água, não conseguia pôr os
pensamentos em ordem.
- Temos que ir à sede da Agência. Se
lá não encontrarmos respostas, onde podemos encontrá-las? – Disse o Carlos, com
uma lucidez de ideias que até a ele admirava.
- Creio que tens razão filho. Amanhã
pensamos nisso. – Respondeu a mãe. – Não estavas com sono! – Disse ela,
tentando forçar um sorriso – Vá lá, toca a nanar!
- Está bem, - Respondeu o Carlos -
Boa noite, mãe.
- Boa noite, meu querido. Se quiseres
alguma coisa, chama, 'tá bem?
- Sim chefe! – Respondeu o Carlos,
simulando uma continência.
A mãe deu-lhe um beijo na testa e
ajeitou-lhe a roupa. Dirigiu-se para a porta do quarto, apagou a luz e, antes
de encostar a porta, olhou durante uns segundos para o filho.
- Mãe? – Disse o Carlos.
- Sim filho?
- Gosto muito de ti, mãe.
- Eu também gosto muito de ti, meu
filhote. – Respondeu ela, sem conseguir controlar uma lágrima no canto do olho.
Encostou a porta e afastou-se. Tinha sido um dia duro. Encontrava-se cansada
mas não estava com disposição para dormir. «Mas que raio! Porque é que ninguém
me disse que ele não vinha?» pensou. Sentou-se no sofá da sala e tentou ver um
pouco de televisão. Os seus pensamentos continuavam a repetir-se. «Porquê?» pensava,
«porquê?»
Depois de correr os 150 canais duas
vezes, decidiu ir-se deitar.
*****
Através da janela panorâmica podia
admirar a escuridão do espaço exterior. Recostado no seu cadeirão de pele, de
costas voltadas para a secretária, deixava que a sua mente se esvaziasse de
pensamentos enquanto contemplava a imensidão do espaço. O cadeirão era novo,
rangia ao mínimo movimento, e isso agradava-o, sempre gostara do som do ranger
do cabedal novo. Mas não só o cadeirão era novo, tudo ao seu redor o era, toda
a base, ele podia sentir-lhe o cheiro... o cheiro característico de coisas
novas. Uma base novinha em folha, com o equipamento mais sofisticado alguma vez
concebido pelo Homem, na palma da mão, para ele controlar. Que maravilhosa era
aquela sensação de poder.
Tinha todas as luzes do escritório
apagadas, a escuridão arrastava-se também para o interior do edifício,
cercando-o por completo. Como se estivesse perfurado, o manto negro que se via
no exterior, estava polvilhado de incontáveis pontos, pequenas luzinhas… as
estrelas. Ali, na Lua sem atmosfera, no lado oculto, agora negro sem luz, podia
melhor contemplá-las. Adorava ouvir o silêncio do espaço. Adorava contemplar as
estrelas em toda a sua beleza. Nada era mais relaxante e libertador do que
aquela imensidão escura e silenciosa.
Já passara dos quarenta anos a algum
tempo. Apesar da idade, mantinha-se em forma, sendo um oponente bastante
difícil de bater no squash, o seu
desporto por excelência. No entanto, fisicamente, não se distinguia muito da
generalidade da população, com a sua estatura média e peso a coincidir.
Mantinha o cabelo sempre impecavelmente penteado, de um castanho ligeiramente
claro, que em certas partes começava já a querer ficar grisalho. «Correu tudo
como planeado.» pensou. Olhou para o relógio que tinha pendurado na parede.
Pouco passava das quatro horas, hora de Lisboa. O Shuttle Magalhães, se tudo tivesse corrido bem, estaria agora a
chegar à Terra. Contrariamente ao que estava programado, só tinha sido evacuado
o pessoal de nível três ou inferior. Basicamente trabalhadores de força bruta e
técnicos de pouca monta. Ele tinha conseguido convencer a Agência que era necessário
que os técnicos de nível um e dois permanecessem na base para poderem continuar
a trabalhar no satélite de telecomunicações. A ilusão tinha sido mantida e
enviada junto com cada um dos passageiros do Magalhães, “ali ainda havia muito
trabalho para fazer”. Os responsáveis da Agência não demorariam muito tempo a
querer enviar um novo grupo para continuar o trabalho que estava por fazer.
Efectivamente, era verdade que ali ainda havia muito por fazer, mas tudo o que
faltava era irrelevante para os objectivos do grupo que ficara na base. Só uma
coisa impedia o envio imediato de novos trabalhadores para a continuação dos
trabalhos, o satélite. Enquanto a Agência continuasse convencida que o satélite
não estava operacional, não iria arriscar a enorme despesa de enviar um grupo
de trabalhadores para a Lua só para ficarem lá encravados à espera de poderem
começar a trabalhar. Como ao satélite só tinha acesso o pessoal de níveis um ou
dois, exactamente os que compunham o grupo que não partira no Shuttle, tinham agora uma margem de
trabalho algo apertada, exactamente o tempo que a Agência considerasse
necessário para porem o satélite operacional, mas que seria suficiente para
levarem a cabo o plano que ele tinha delineado. Quanto ao satélite, este estava
mais do que pronto, só faltava mesmo era tratar do seu lançamento.
Alguém bateu à porta, interrompendo
estes pensamentos.
- Entra. – Disse, mantendo-se na
mesma posição, de costas voltadas para a porta.
- Está tudo pronto para o
lançamento, Vieira. – Informou um homem de meia-idade, que, do cimo do seu
metro e oitenta, recheado com um bocado de peso a mais, especialmente na
barriga, era desesperadamente esperado por alguém, naquele preciso momento, na
Terra.
- Obrigado, Antunes. Eu já lá vou.
- Eu vou adiantando as coisas,
então. – Respondeu o Antunes, encostando a porta e afastando-se.
«Hoje vai ser o primeiro dia de uma
nova era.» pensou o Vieira. Alguns segundos depois, com um sorriso algo cínico
na boca, levantou-se e dirigiu-se para a sala de controlo.
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