Leia aqui o meu segundo conto publicado na Fábrica do Terror.
Neste Blog publico as histórias e os contos que escrevo pelo puro prazer da escrita.
Quando o conheci, naquele agosto em que estive em Setúbal, já apresentava as marcas que o definiam. O cabelo periférico circundava uma careca que brilhava debaixo do sol. Não havia quem o convencesse a cobri-la com um chapéu. Já tinha pouco rosto no amontoado de rugas que lhe guarneciam os olhos, o nariz e a boca. Nesta, as crateras expandiam, e pouco ou nada faltava para ser promovido a “bi-dente”.
Mas Zacarias não se deixava esmorecer. Quando o calor gritava “presente” bastava dar um salto à praia de Galapinhos para o encontrar.
Recordo-me que era uma visão algo cómica, e que permitia, facilmente, reconhecer quem se cruzava com ele pela primeira vez. Zacarias fazia do mar a sua segunda casa, mesmo que a água estivesse à temperatura em que se conservam os iogurtes. Pobres daqueles que o tomavam como referência e se aventuravam nas águas sem o preliminar teste do termómetro de tornozelo.
Nesse ano acompanhava-me um amigo de um amigo, que eu mal conhecia, e que era muito dado a conversas, não diria filosóficas, mas de um teor algo esotérico, se emprego bem o termo.
De todas as conversas que tivemos nesses dias, recordo-me vivamente quando esse amigo do amigo se cruzou com Zacarias. Na altura habitava-lhe na ponta da língua a questão “quais os ingredientes da felicidade”. Vários foram os debates, uns mais profundos, outros mais superficiais, em que se digladiavam argumentos. Materialismo versus liberdade de amarras. A felicidade intrínseca ou a felicidade por proxy. Não perguntem, são coisas que o ouvi dizer e ainda hoje me questiono o que significam. Zacarias foi mais pragmático. Bastam água e sal, disse, apontando para o mar. A todas as tentativas de aprofundar mais a questão, de apelar aos anos de vida, às suas vicissitudes, às alegrias e infortúnios, Zacarias apenas apontava para o mar e repetia, bastam água e sal. Eu observava a calma e a passividade de Zacarias, a apontar para as águas cristalinas e calmas do oceano, e a micose intelectual do amigo do amigo a bater forte pela falta de respostas de superlativa essência. Sim, esta expressão também é dele, vá-se lá saber o que significa.
Zacarias, que me pareceu ter percebido bem o efeito que estava a ter no intelectual urbano, continuou sempre na sua toada. Sempre que um novo ângulo era procurado, para extorquir uma resposta diferente, ele distorcia a conversa e rematava com um “bastam água e sal”.
- E comida? – Perguntou o amigo do amigo. – Nesta terra de pescadores, não me diga que nada do que por aqui se come, é ingrediente de felicidade?
- Sim. – Respondeu Zacarias. – Qualquer peixe bem amanhado, lavado e temperado. Para isso bastam água e sal.
O amigo do amigo desesperava, e nós contínhamos o riso. Ansiávamos por mais.
Zacarias, algo cansado da conversa, levantou-se. Mas o amigo do amigo não dava tréguas.
- E aqui na praia, no sopé da serra, não será pelo peixe que se terá felicidade pela comida, certamente.
- Não, claro que não. Aqui bastam umas bolachas. – Zacarias para e olha para trás, ostentando um sorriso no canto da boca. – E bastam água e sal. – De seguida, arranca em corrida e mergulha no mar, deixando o amigo do amigo vermelho. Até hoje não sei se do sol se de raiva.
A Velha Escrita, 03/07/2024, com o tema: Bastam água e sal
Leia aqui o meu conto publicado na Fábrica do Terror