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RUMBA

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As férias chegavam ao fim. Já poucos dias restavam para apreciar o sol e poucas noites para sentir o bafo quente de agosto. O alpendre, em madeira, rangia suavemente sob os seus pés. A noite estava amena. A temperatura descera, ligeiramente, e tornara-se um pouquinho mais suportável. Cercava-o uma mistura de natureza e urbanismo, embora estivesse ligeiramente afastado da metrópole mais próxima. Com um copo de rum na mão, sentou-se na cadeira de palha, desbotada pelo forte sol que a banhava há anos. Ao longe ouvia os sons da Rumba. Os locais festejavam alguma coisa. Nunca fora muito dado a danças. Apreciava ver, mas mantinha-se sempre à parte recusando todos os convites. O som trazia-lhe memórias recentes. Lembrava-o dela. De a conhecer. De admirar a sua forma graciosa a oscilar ao som dos ritmos. Da pele bronzeada e do cabelo negro, solto, que acompanhava os movimentos do corpo com uma fluidez hipnotizante. Na mesinha ao lado estava a caixa de charutos. Nunca fora muito de fumar

Texto da sessão de 06/03/2024 da "A Velha Escrita"

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Podia dizer que a meteorologia estava a ajudar. A chuva fizera uma pausa naquele dia e isso permitia-lhe o prazer da caminhada noturna. Era uma casualidade do destino, obviamente, mas não podia deixar de se sentir com alguma sorte. O frio apertava mais naqueles dias que nos anteriores. Março ainda não trazia a promessa da Primavera. O fevereiro despedira-se há pouco e deixara marcada a sua presença. Saiu de casa. O dia de trabalho tinha sido exigente e fazia bem apenas caminhar esvaziando os pensamentos de toda a carga negativa que trouxera para casa. Mesmo assim, algo se mantinha presente, aninhado ali para os lados da nuca. Uma ideia, uma sensação, como se algo estivesse em falta. A meio do trajeto questionava-se, “do que me esqueci?” Era como se as palavras quisessem sair, mas estavam trancadas atrás de uma porta e a parte sarcástica da sua mente é que detinha a chave. A noite estava agradável, a luz da cidade banhava as ruas, esburacadas, como era tradição. Felizmente, hoje o q

ALMA

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  Dizem que a alma brilha em nós. Dizem que se consegue ver, por vezes, como uma áurea em torno do corpo. Dizem que a alma brilha mais quando morremos, quando esta abandona o corpo. Mas dizem que só em momentos únicos a conseguimos ver.  E quais são esses momentos? Quando são?  De dia? De noite? Ao pôr-do-sol? Ao nascer do sol? Dependerá somente da hora ou também do local? Quais são as condicionantes? O que torna um momento em único?  Estas questões torturam-me!  Estou a deixar de acreditar. Estou a perder a fé nesta verdade, que se está a transfigurar, na minha mente, numa mentira...  Mesmo assim, esta verdade continua a agarrar-se ao meu ser. A alma existe! Tenho de a ver! Tenho de perseverar!  Já vou em 24, sem sucesso.... Quantos mais terei de matar para a ver?...

Texto da sessão de 03/04/2024 da "A Velha Escrita"

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Há verdades incontornáveis da vida. Se eu fosse rico, não era pobre. Tenho dito. Com esta premissa em mente decidi singrar no mundo dos negócios, vender a alma ao Diabo e ser um empresário de sucesso. Azar dos azares, acabei por concluir que a minha alma não vale nada. O Diabo não me apresentou nenhuma oferta por ela. Cansado de esperar, coloquei-a a leilão entre os demónios de segunda escolha. Nem assim tive sucesso. Quando o tédio da espera me invadiu, fui obrigado a aceitar, a “dar a mão à palmatória”, como diz o povo. O meu sucesso na venda daquilo que, dizem uns, é a essência do meu ser, ou melhor, o meu insucesso nessa venda, decretou o meu fado. Via-me obrigado a..., a palavra estava atravessada na minha garganta e provocava-me arrepios de suor frio. Mas era imperativo que a deitasse para fora, que a enfrentasse. Que assumisse que era a palavra de ordem para, no futuro, não voltar a dizer “se eu fosse rico”. Era a palavra do meu desencanto, do meu martírio, de tudo o que repud

UM MINUTO

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Certeza não tinha, mas quase. Era impossível saber o que lhe acontecera naquele dia. A sua memória encontrava ali um hiato, um espaço em branco que não conseguia, de forma alguma, preencher. Mas estava seguro de que o que viera a saber depois estava ligado a esse momento da sua vida. Fora na infância que acontecera, mas só na adolescência é que descobrira o seu efeito, fosse o que fosse que se passara anos atrás. Essa era a conclusão que tirara, que o que agora era capaz de fazer derivava diretamente daquele vazio que existia na sua memória. Um acaso, num dia como outro qualquer, revelou-lhe essa verdade. Estava junto à estrada, à porta de casa, quando um cão de pequeno porte passou por ele e se lançou em corrida a atravessar a rua. Sentiu-se impotente quando um carro em excesso de velocidade colheu o pequeno animal, matando-o instantaneamente. Seria ele assim tão impotente para prevenir aquela morte? Reagiu por reflexo, dir-se-ia mesmo de forma instintiva. Recuou no tempo e, quando

O CAÇADOR

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«I am the hunter…». As palavras repetiam-se nos seus pensamentos.   «Eu sou o caçador...». Mas os tempos eram outros e as presas também. Caçava homens. O seu foco eram homens orgulhosos, endurecidos por longos anos de luta numa guerra que parecia não ter fim. Não eram os soldados que lhe interessavam. Perseguia, exclusivamente, as altas patentes, e, neste momento, uma em particular. Este oficial era tão importante que, se conseguisse cumprir a sua missão, poderia, apenas com uma bala, mudar o curso da guerra. Sentiu a frescura do ar da manhã, os primeiros raios de sol começavam a despontar, antecipando a chegada do verão. Ao seu redor podia ver a bela paisagem da outrora gloriosa França, um país tão destroçado por uma guerra inútil e sem sentido, mas que, ainda assim, conseguia manter a sua singularidade e beleza. Os prados, antes verdejantes, estavam rasgados pelas crateras das bombas, e por trincheiras cavadas à pressa por um exército que tentara, por todos os meios, deter o avanço d

DESPEDIDA

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- Já não me lembrava de te ver tão em paz. Quantos foram os anos do teu sofrimento, a lutar  contra esse cancro que te levou de mim? Perdi a conta. Agora olho para ti e vejo-te como que a dormir um sono sossegado, como fazias antes da doença, como não te via fazer há tanto tempo. Este caixão é a tua última cama, e está tão distante do nosso quarto, das nossas noites de amor, da nossa vida que parecia não ter fim e que acabou demasiado cedo.  - Ele está num sítio bom, já não sofre, e está feliz. - Olá, Diogo, há muito tempo que não te via. - Olá, Diana. Há muito tempo, mesmo, mas tinha de cá vir para te ver. - Fizeste bem. É sempre boa a companhia de uma cara amiga. - Não te preocupes pelo Carlos, ele passou um mau bocado, mas agora está bem. - Ó Diogo, tu sabes que eu não sou de religiões. - Mas eu não te estou a falar de religião. A Natureza é assim. - Eu sei que sempre tiveste inclinação para o sobrenatural, mas agora não me ajudas com essas conversas. O Carlos já não