quarta-feira, 18 de junho de 2025

terça-feira, 6 de maio de 2025

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Habemos papa"

 

Ergo os olhos para o monitor no exacto momento em que ele se apaga.

­— Maldito cabo que está sempre a fazer mau contacto.

Levanto-me, estendo-me por cima da secretária e, com o braço enredado nos cabos que residem por trás do painel de 27”, empurro o da energia.

Nada.

Arranco-o e volto a ligá-lo.

Nada.

— Maldito! — Praguejo, entre dentes. — Rai’s parta o cabo! — Grito.

— Mulher. — O meu marido entra no escritório. — Acho que estamos sem luz.

— E vai demorar? Preciso de acabar este relatório.

— Como queres que eu saiba? — Responde-me, com aquele olhar de fastio que o caracteriza.

— Pronto. — Bato com as mãos no tampo da mesa. — Então, vou aproveitar para ver as séries que tenho em atraso. — Levanto-me e passo por ele.

— Na televisão? — Questiona-me, quando já lhe virei as costas.

— Sim, porquê? — retruco, sem me virar.

— Porque não temos luz…

Paro, olho para o tecto e solto um grito, enquanto puxo os cabelos. Baixo e rodo a cabeça, encarando-o. Fulmino-o com o olhar.

— Um livro, então.

 

As horas passam e a luz não volta. No patamar do prédio ouço uma comoção. Pouso o livro, levanto-me do sofá e vou até ao hall de entrada. Espreito para o exterior e vejo os meus vizinhos da frente a carretar sacos de compras, para casa, à luz de lanternas. Aquilo intriga-me. Abro a porta.

— Ó Ana, foste às compras sem luz? — Pergunto.

— Luísa, Luísa! — Ela chama o meu nome como se eu estivesse em perigo. — A Europa está sem luz. É um ataque, está confirmado. Vai acabar tudo. Precisamos de estar preparadas para o pior. Temos de arrecadar o máximo possível antes que tudo acabe.

— Tens a certeza?

— Tenho. Não ouves a rádio? É um ciberataque a larga escala. Começou! Começou!

— Começou o quê? — Pergunto, mas ela já não me ouve. Corre para dentro de casa. Ouço as três fechaduras a rodarem, uma atrás da outra.

— Manel! — Grito para dentro de casa. — Mexe-te, que vamos ficar presos em casa sem nada para comer.

O trânsito é um inferno. Toda a gente está na rua. A sinfonia de buzinas é caótica. Berra-se pelos vidros abertos. Ao fim, conseguimos furar. Deixamos o carro em cima do passeio e corremos para o supermercado aos tropeções. A rua está escura, iluminada a intermitências pelos faróis dos carros que passam. Entramos. Carrinhos cheios de enlatados são empurrados uns contra os outros. As prateleiras estão vazias. No corredor do arroz, dois homens entroncados digladiam-se ao estalo e pontapé por uns sacos de arroz. Avançamos. Esbarramos num carrinho cheio de sacos de pão-de-forma. O meu marido espanta-se com a quantidade, mas o homem esguio que empurra o carrinho receia que lhe roubem o que ainda não é dele. Olha para o meu marido e rosna, mostrando os dentes. Parece o pastor alemão do meu vizinho, quando era criança, que me pregava sempre um valente susto quando passava em frente ao portão da casa dele.

Entramos no corredor dos cereais. As prateleiras estão vazias ou com sacos arrebentados. Vejo o meu marido a correr até ao fundo. Pouco depois desfila para mim, triunfante. Ergue os dois braços e ostenta uma caixa de Cerelac intacta entre as mãos.

— Habemos papa! — Ouço-o gritar, segundos antes de um homem encorpado aparecer por trás dele, em corrida, e o arremessar contra as prateleiras com uma placagem ao bom estilo da NFL.

Felizmente, o hospital tinha gerador…


sábado, 3 de maio de 2025

Texto do desafio da sessão de 01/04/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Será desta?"

 

Primeiro olhou de longe. Admirou a estrutura, a perfeição das linhas, a imponência da sua altura, e as cores que a destacavam de tudo o que a rodeava. A engenharia necessária para a criar não deixava de o surpreender.

Manteve-se ali, de pé, debaixo do sol escaldante, seguindo, com o olhar, cada linha, cada curva, cada aresta, durante um tempo que, para ele, passou num ápice.

Inspirou fundo e tomou a decisão. Deu um primeiro passo, a medo. As pernas vacilavam um pouco, mas a determinação empurrava-o e dava outro. Aos poucos, lentamente, foi-se aproximando. Ignorou os olhares que acompanhavam a sua caminhada. Ignorou as cabeças que expressavam «não» num movimento horizontal, repetido, em circuito fechado. Ignorou tudo o que se passava à sua volta.

— Será desta? — Ouviu alguém questionar. Parou e procurou a voz, mas apenas encontrou rostos fechados. Não se deixou incomodar por aquele comentário. Novo passo, um recomeço. Passo seguinte. Determinação. Foco. Objectivo. Mais um passo. Mais próximo. Quase lá.

A estrutura agigantava-se à sua frente. Um colosso de metal e plástico. Imponente. Intimidante. «Será desta?». A pergunta ressurgia na sua mente. Seria? Tinha de ser. De tantas vezes que o tentara, esta seria, garantidamente, a definitiva.

Agarrou o metal escaldante. Ergueu o pé esquerdo e colocou-o sobre a primeira barra. Elevou o corpo sobre esse pé e assentou o direito na barra acima. O metal, exposto ao sol, queimava-lhe a planta dos pés. Manteve o foco. Ignorou aquele incómodo. Ignorou os olhares que se juntavam. Que acompanhava a sua ascensão. Uma a uma, pisou as barras de metal que o levavam mais acima. Mais alto. Ergueu-se sobre todo o resto e enfrentou o destino. Estava frente a frente com aquilo que o atormentara durante horas. Aquilo que tentara enfrentar uma e outra vez, sem sucesso. Mas agora estava ali, na boca do monstro. Enfrentava o derradeiro desafio. Deu um passo incerto e parou.

— Será desta? — alguém gritou, do meio da multidão.

Olhou para baixo. Um mar de cabeças estava virado para ele. Aguardavam. Impacientavam-se, mas não desistiam.

Enfrentou novamente o seu Némesis. Inspirou fundo.

— Acho que não — murmurou.

Deu meia-volta e, lentamente, começou a descer.

— Despacha-te — ouviu gritar —, aqui há quem queira usar o escorrega.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Texto do desafio da sessão de 11/03/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Porque não?"

 

Os passos ecoavam pelo corredor. Tacões duros contra traves de madeira. Um som seco, ritmado, repetitivo. A porta separava-o do corredor. Estava fechada. Sempre a conhecera fechada. Se sempre estivera fechada, não sabia. Ele não estivera ali sempre, mas estivera desde que lá chegara. Quando é que isso aconteceu, não se recordava. Teria alguma vez estado noutro sítio?

Os passos voltavam-se a ouvir. O som envolvia-o num crescendo de pancadas. Umas mais pesadas que outras. Ouvia-os chegar, ouvia-os passar e ouvia-os a afastarem-se.

Entre aquelas quatro paredes, apenas rasgadas por uma porta, estava o seu mundo. O seu universo. A sua vida. Do outro lado estavam os outros. Os restantes. Estava tudo o que ele não sabia o que era. Estava o desconhecido. Estava tudo o que aquelas quatro paredes não eram.

Os passos regressaram. Por vezes, paravam junto à porta e, por vezes, ficavam em silêncio, por um momento, antes de se fazerem ouvir novamente. Afastaram-se. O padrão mantinha-se. Padrões eram uma coisa boa. Previsível, dentro de um limiar controlado de imprevisibilidade. Os padrões regiam o outro lado. Mantinham o desconhecido dentro de parâmetros aceitáveis.

Do seu lado nada era imprevisível. Nada, era, na verdade, o que o seu lado era. Entre as quatro paredes, apenas rasgadas por uma porta de madeira maciça, estava nada. Ele e nada. Quatro paredes sólidas de pedra. Uma porta. E nada mais. Nada, não. Segurança. Certeza. Previsibilidade. Ali não havia risco, não havia perigo, não havia ameaça. Ali havia apenas… nada…

Os passos fizeram-se ouvir. Rápidos e curtinhos. O som a subir em catadupa. Um metralhar de tacões. Dois pés em sincronia alternada perfeita. Param em frente à porta. Silêncio. Ele aguarda as pancadas ritmadas que anunciam a partida.

Ouve as pancadas ritmadas. Mas, desta vez, são na porta e não no chão. Alguém batia. Nunca tal acontecera. Os padrões rasgavam-se. A realidade alterava-se. O seu mundo passara a ser do conhecimento dos outros? Os dois mundos sempre se tinham mantido separados. O que mudara?

— Não queres sair? — A voz era doce e melódica. Convidava-o a responder. — Já aqui passei tantas vezes e tu nunca sais. Porque não sais?

Encolheu-se no canto, do outro lado do quarto. Nunca saíra. Nunca pensara em sair. Para quê sair? Porquê sair?

— Quero-te conhecer. — A voz envolvia-o como um perfume irresistível. — Porque não sais?

Levantou-se e aproximou-se da porta. Olhou em volta. Olhou para as quatro paredes e para a porta de madeira. Olhou para o vazio da vida. Seguro, sem risco, mas vazio. Previsível, controlado, mas, mesmo assim, vazio. Oco. Estéril. Morto.

— Sair? Porque não?

  Leia  aqui o meu conto publicado na Fábrica do Terror