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A mostrar mensagens de abril, 2024

RUMBA

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As férias chegavam ao fim. Já poucos dias restavam para apreciar o sol e poucas noites para sentir o bafo quente de agosto. O alpendre, em madeira, rangia suavemente sob os seus pés. A noite estava amena. A temperatura descera, ligeiramente, e tornara-se um pouquinho mais suportável. Cercava-o uma mistura de natureza e urbanismo, embora estivesse ligeiramente afastado da metrópole mais próxima. Com um copo de rum na mão, sentou-se na cadeira de palha, desbotada pelo forte sol que a banhava há anos. Ao longe ouvia os sons da Rumba. Os locais festejavam alguma coisa. Nunca fora muito dado a danças. Apreciava ver, mas mantinha-se sempre à parte recusando todos os convites. O som trazia-lhe memórias recentes. Lembrava-o dela. De a conhecer. De admirar a sua forma graciosa a oscilar ao som dos ritmos. Da pele bronzeada e do cabelo negro, solto, que acompanhava os movimentos do corpo com uma fluidez hipnotizante. Na mesinha ao lado estava a caixa de charutos. Nunca fora muito de fumar

Texto da sessão de 06/03/2024 da "A Velha Escrita"

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Podia dizer que a meteorologia estava a ajudar. A chuva fizera uma pausa naquele dia e isso permitia-lhe o prazer da caminhada noturna. Era uma casualidade do destino, obviamente, mas não podia deixar de se sentir com alguma sorte. O frio apertava mais naqueles dias que nos anteriores. Março ainda não trazia a promessa da Primavera. O fevereiro despedira-se há pouco e deixara marcada a sua presença. Saiu de casa. O dia de trabalho tinha sido exigente e fazia bem apenas caminhar esvaziando os pensamentos de toda a carga negativa que trouxera para casa. Mesmo assim, algo se mantinha presente, aninhado ali para os lados da nuca. Uma ideia, uma sensação, como se algo estivesse em falta. A meio do trajeto questionava-se, “do que me esqueci?” Era como se as palavras quisessem sair, mas estavam trancadas atrás de uma porta e a parte sarcástica da sua mente é que detinha a chave. A noite estava agradável, a luz da cidade banhava as ruas, esburacadas, como era tradição. Felizmente, hoje o q

ALMA

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  Dizem que a alma brilha em nós. Dizem que se consegue ver, por vezes, como uma áurea em torno do corpo. Dizem que a alma brilha mais quando morremos, quando esta abandona o corpo. Mas dizem que só em momentos únicos a conseguimos ver.  E quais são esses momentos? Quando são?  De dia? De noite? Ao pôr-do-sol? Ao nascer do sol? Dependerá somente da hora ou também do local? Quais são as condicionantes? O que torna um momento em único?  Estas questões torturam-me!  Estou a deixar de acreditar. Estou a perder a fé nesta verdade, que se está a transfigurar, na minha mente, numa mentira...  Mesmo assim, esta verdade continua a agarrar-se ao meu ser. A alma existe! Tenho de a ver! Tenho de perseverar!  Já vou em 24, sem sucesso.... Quantos mais terei de matar para a ver?...

Texto da sessão de 03/04/2024 da "A Velha Escrita"

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Há verdades incontornáveis da vida. Se eu fosse rico, não era pobre. Tenho dito. Com esta premissa em mente decidi singrar no mundo dos negócios, vender a alma ao Diabo e ser um empresário de sucesso. Azar dos azares, acabei por concluir que a minha alma não vale nada. O Diabo não me apresentou nenhuma oferta por ela. Cansado de esperar, coloquei-a a leilão entre os demónios de segunda escolha. Nem assim tive sucesso. Quando o tédio da espera me invadiu, fui obrigado a aceitar, a “dar a mão à palmatória”, como diz o povo. O meu sucesso na venda daquilo que, dizem uns, é a essência do meu ser, ou melhor, o meu insucesso nessa venda, decretou o meu fado. Via-me obrigado a..., a palavra estava atravessada na minha garganta e provocava-me arrepios de suor frio. Mas era imperativo que a deitasse para fora, que a enfrentasse. Que assumisse que era a palavra de ordem para, no futuro, não voltar a dizer “se eu fosse rico”. Era a palavra do meu desencanto, do meu martírio, de tudo o que repud

UM MINUTO

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Certeza não tinha, mas quase. Era impossível saber o que lhe acontecera naquele dia. A sua memória encontrava ali um hiato, um espaço em branco que não conseguia, de forma alguma, preencher. Mas estava seguro de que o que viera a saber depois estava ligado a esse momento da sua vida. Fora na infância que acontecera, mas só na adolescência é que descobrira o seu efeito, fosse o que fosse que se passara anos atrás. Essa era a conclusão que tirara, que o que agora era capaz de fazer derivava diretamente daquele vazio que existia na sua memória. Um acaso, num dia como outro qualquer, revelou-lhe essa verdade. Estava junto à estrada, à porta de casa, quando um cão de pequeno porte passou por ele e se lançou em corrida a atravessar a rua. Sentiu-se impotente quando um carro em excesso de velocidade colheu o pequeno animal, matando-o instantaneamente. Seria ele assim tão impotente para prevenir aquela morte? Reagiu por reflexo, dir-se-ia mesmo de forma instintiva. Recuou no tempo e, quando