Olhou para o teclado. Já apagara mais vezes o texto do que as que o escrevera. Sabia que tal proporção era matematicamente impossível, mas era assim que se sentia. Se ainda fosse como no tempo em que começou a escrever, com a sua velhinha Olivetti, de teclas perras, já teria um monte de bolas de papel amarrotado junto aos pés. Para não falar nas dores nos dedos. Se calhar, nesses tempos, escrevia melhor porque o horizonte de sofrimento se ia aproximando conforme avançava a escrita. Todos os momentos em que os dedos não sofriam cãibras deveriam ser produtivos. Agora, com um computador de teclas moles, podia escrever horas a fio sem problemas de maior. Como não imprimia, perdia a noção aos começos abandonados. Nos velhos tempos, chegara a reciclar alguns desses começos, dando-lhes nova vida noutras histórias. Por vezes, melhores do que a história que abortara aquele começo.
Olhou para o cursor a piscar. Haveria visão mais enervante do que aquela? Escusado seria dizer que a velhinha Olivetti não tivera cursor e que nunca o enervara tanto como aquele maldito traço a piscar.
Recostou-se na cadeira e olhou para a paisagem. Nem se isolando ali, naquele café no sopé das montanhas, onde o sossego era rei, conseguia ter paz de alma para criar o seu novo best seller. Já ponderara se não estaria a ter um bloqueio devido à pressão de dar continuidade ao seu sucesso esmagador, “A noite das margaridas”, mas a situação não era nova. Até já sofrera maior pressão. Fora nessas alturas que se elevara acima de todas as expectativas e criara as suas mais memoráveis obras.
Levantou-se. Esticou o corpo com um estalar das costas. A idade já não contribuía para aquelas longas maratonas sentado. Pediu um café. Esvaziou os dois pacotes de açúcar. Café amargo só contribuía para o enervar ainda mais. Mexeu-o lentamente enquanto aguardava que arrefecesse. Estava a 30 km de casa, refugiado dos ruídos da cidade e do frenesim da família. As condições ideais estavam todas reunidas, mas, mesmo assim, a tela continuava em branco. Olhou para o relógio. Ainda dispunha de um par de horas para escrever.
Sorveu o café. Continuava quente. Sentou-se e olhou, novamente, para o monitor em branco. Não se podia deixar vencer pela alvura da tela.
— Esperança e inspiração, se faz favor. É o que mais preciso — disse, para si, como a tentar convencer-se de que chegara o momento.
Voltou a mexer o café. Lentamente, enquanto o soprava, uma ideia começou-lhe a aflorar. «E se…?» Pensou. Voltou a sorver o café, que já não estava tão quente. Pelo menos a queimadura já não o incomodava. «Mas é isso!» Os pensamentos começavam a entrar em ebulição. As ideias atropelavam-se umas às outras. Era um verdadeiro tsunami. Podia ver a história toda a passar-lhe em frente aos olhos. Estava extasiado com o que a sua imaginação construía. Um sucesso garantido.
Pousou a chávena na borda da mesa, tal era a ânsia de escrever, sem se preocupar quando esta tombou e se desfez em pedaços. Precisava escrever o mais rápido que a artrose nos dedos permitisse.
O branco da tela desapareceu. O computador indicava que se ia desligar.
O carregador ficara em casa…
Texto redigido na sessão de 06 de Novembro de 2024 d’A Velha Escrita.
Tema: ESPERANÇA E INSPIRAÇÃO, SE FAZ FAVOR
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