quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Texto do desafio da sessão de 04/02/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Escreve um texto sobre o Carnaval, sem usar as palavras Carnaval e Entrudo"

 

Expirou. O vapor formou uma fina nuvem ao redor da boca. A noite gelava, mas a vontade não arrefecia. Passou o portão gradeado e caminhou pelo jardim. Dos lados, sebes altas isolavam a casa do exterior. Admirou os arbustos habilmente podados em forma de animais.

A lua cheia, num céu limpo, envolvia todo o espaço numa cor prateada, apenas desafiada pelas luzes que emanavam pelas frestas entre os grossos reposteiros que cobriam as janelas, e as que, ocasionalmente, se evadiam pela porta quando esta abria, fugazmente, para entrar um novo convidado.

Ajeitou a máscara. Era importante que o disfarce fosse perfeito. Ser reconhecido era sinónimo de expulsão. Ali a palavra de ordem era o anonimato. Os anfitriões tanto insistiam nesta regra que, pelo que lhe constara, nunca ninguém conseguia saber quem era quem na multidão de convidados que enchiam, todos os anos, aqueles salões.

A época festiva impunha a tradição daquele tipo de eventos, mas, dentro daquelas portas, não era permitido pronunciar o nome daquelas festividades que oscilavam, anualmente, na sua posição no calendário.

Sabia dos anfitriões que estes eram excêntricos, mas, mesmo assim, aquelas regras pareciam-lhe exageradas, embora, em verdade, não lhes desse nenhuma importância. Os prazeres e sensações que aquela festa prometia eram mais do que suficientes para aceitar cumprir um par de regras estapafúrdias.

Passadas as massivas portas de carvalho velho, que mais pareciam de um castelo do que de uma casa, mesmo uma como aquela, toda em pedra, deparou-se com uma multidão multicolorida. Desde os vestidos mais elaborados, réplicas autênticas de épocas idas, passando pelos mais futuristas e alucinados, até aos mais simples, todos partilhavam uma característica comum: Escondiam, na perfeição, a identidade de quem os envergava.

O tempo queimava-se, entre copos, que não paravam de chegar em bandejas habilmente equilibradas pelos incansáveis empregados, e conversas soltas, que prometiam prazeres proibidos depois das doze badaladas. Todos os presentes, de uma forma ou de outra, surpreendiam na sua vestimenta. No entanto, um convidado, de entrada tardia, destacou-se dos outros. Viu-o, pela primeira vez, de costas. Vestia uma túnica comprida que lhe cobria todo o corpo, incluindo a cabeça. Era do mais profundo negro que alguma vez vira, apesar de revelar o peso da idade, tanto no tecido em si, como nos rasgões que abundavam na ponta que arrastava pelo chão. Todos estavam maravilhados com aquela presença magnética e imponente. Curiosamente, quando se deu conta, já ela estava dentro da casa, de costas voltadas e ligeiramente curvadas, a mirar o exterior por uma fresta de uma janela. Olhou em volta e percebeu que o que sentia e pensava se espelhava em todos os outros rostos.

Quando no relógio de pé, que dominava a sala, soaram as doze badaladas, a figura endireitou-se e, lentamente, rodou e encarou a multidão. Na mão ostentava uma gigantesca foice e no rosto apenas se vislumbrava os tons branco-amarelados de uma caveira. O reconhecimento do que viam colocou todos em choque. Alguns, mais atrás, dirigiram-se para a porta, mas esta estava trancada. As janelas, perceberam apenas naquele momento, estavam soldadas à pedra e os vidros eram demasiado pequenos para, mesmo partidos, permitirem a saída de alguém. Com o reconhecimento de que estavam encerrados naquela gigantesca prisão de pedra, veio uma voz cavernosa, pestilenta e enigmática.

— A quem vendeu a alma, nem a carne vale.


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