Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos do meu ser e já antecipa a posição em que me vou colocar. No topo dos braços, o tecido coçado revela as suas entranhas. Mas por nada a troco.
Na minha frente, a janela grande da sala mostra-me as paredes de betão que me cercam. Os campos verdejantes que me saudaram à chegada, transformados em torres cinzentas. Mas não troco esta casa por nenhuma outra.
Levanto-me. O silêncio que reina no interior da casa é assaltado pelos sons que chegam da cidade. Carros que passam, num ritmo incessante, como ondas de um mar artificial. Pessoas que falam, apesar de nada se entender. E, em cima de todos estes ruídos, as eternas obras do outro lado da rua. Uma panóplia de sons que se foram intrometendo na minha vida e dos quais agora não me consigo livrar.
Passo ao lado da cozinha. Os móveis castanhos de desenho antigo continuam a suplicar por substituição, mas ainda não me consegui separar deles.
Ao fundo do corredor, a divisão que me traz a esta conversa. Fica logo após o quarto-de-banho, com os seus azulejos cinzentos e louças raiadas, como olhos de quem não dorme há várias noites.
Ao centro a cama. Era assim, no início. Apenas a cama, ao centro. Esta visão activa memórias doces de um passado que nunca se repetirá. O que vos poderia contar desses tempos… embora agora não seja o momento mais oportuno.
As mesas de cabeceira apareceram depois. Não combinam muito bem com a cama, confesso. O estilo trabalhado, a inclinar para um D. José de imitação barata, destoam com as linhas rectas do leito onde, todas as noites, repouso.
Esqueci-me de referir a cadeira. Essa está lá desde que chegou a cama. Durante muito tempo foi o repouso da minha roupa. A estação onde esta aguardava para me cobrir depois do nascer do dia seguinte. Mas cedo apareceu o guarda-fatos. Reclamou toda a minha roupa e a pobre cadeira agora está vazia e saudosa, como eu, de outros tempos.
A cómoda deu um ar da sua graça, era domingo, estava eu a ver a bola. Branca, de linhas rectas, num estilo muito moderno, contribui com uma certa graciosidade para o caos de estilos que caracteriza esta minha habitação.
Quando pensava que mais nada poderia suceder, eis que, numa noite de forte chuvada, a parede sul se afastou ligeiramente e surgiu um camiseiro em castanho, de madeira maciça e linhas rectas, mas com alguns apontamentos arredondados. Não consigo perceber porque apareceu. Nunca fui pessoa de usar camisas, daí nunca ter entendido a sua utilidade. Tem-me servido para guardar todas aquelas coisas que não me servem para nada, mas que, um dia, garantidamente, servirão. Embora eu tenha a certeza de que isso é apenas uma desculpa para açambarcar e não deitar nada fora.
Até hoje ninguém me consegue tirar da ideia que foi esta minha mania de guardar tudo bem organizado, que fez surgir o roupeiro. Recordo, como se fosse ontem, aquela tarde de Verão em que uma onda de calor assolou a cidade. Estava indeciso entre abrir ou manter fechada a janela do lado norte quando a parede se afastou e ele surgiu. Desde esse dia que recebe as roupas da estação do ano que termina e liberta as roupas da estação que começa.
Neste momento tenho uma quantidade considerável de roupas de cama, desde lençóis a edredons, encostados à parede leste, a que é oposta à porta de entrada. Todos os dias aqui regresso na esperança de que a parede se tenha afastado e que um novo armário tenha aparecido. Assim teria onde as guardar. Apesar de já terem passado anos desde a última vez, continuo confiante que o meu quarto ainda não parou de crescer.