quarta-feira, 9 de julho de 2025

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Quarto crescente"

 

Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos do meu ser e já antecipa a posição em que me vou colocar. No topo dos braços, o tecido coçado revela as suas entranhas. Mas por nada a troco. 

Na minha frente, a janela grande da sala mostra-me as paredes de betão que me cercam. Os campos verdejantes que me saudaram à chegada, transformados em torres cinzentas. Mas não troco esta casa por nenhuma outra. 

Levanto-me. O silêncio que reina no interior da casa é assaltado pelos sons que chegam da cidade. Carros que passam, num ritmo incessante, como ondas de um mar artificial. Pessoas que falam, apesar de nada se entender. E, em cima de todos estes ruídos, as eternas obras do outro lado da rua. Uma panóplia de sons que se foram intrometendo na minha vida e dos quais agora não me consigo livrar. 

Passo ao lado da cozinha. Os móveis castanhos de desenho antigo continuam a suplicar por substituição, mas ainda não me consegui separar deles. 

Ao fundo do corredor, a divisão que me traz a esta conversa. Fica logo após o quarto-de-banho, com os seus azulejos cinzentos e louças raiadas, como olhos de quem não dorme há várias noites. 

Ao centro a cama. Era assim, no início. Apenas a cama, ao centro. Esta visão activa memórias doces de um passado que nunca se repetirá. O que vos poderia contar desses tempos… embora agora não seja o momento mais oportuno. 

As mesas de cabeceira apareceram depois. Não combinam muito bem com a cama, confesso. O estilo trabalhado, a inclinar para um D. José de imitação barata, destoam com as linhas rectas do leito onde, todas as noites, repouso. 

Esqueci-me de referir a cadeira. Essa está lá desde que chegou a cama. Durante muito tempo foi o repouso da minha roupa. A estação onde esta aguardava para me cobrir depois do nascer do dia seguinte. Mas cedo apareceu o guarda-fatos. Reclamou toda a minha roupa e a pobre cadeira agora está vazia e saudosa, como eu, de outros tempos. 

A cómoda deu um ar da sua graça, era domingo, estava eu a ver a bola. Branca, de linhas rectas, num estilo muito moderno, contribui com uma certa graciosidade para o caos de estilos que caracteriza esta minha habitação. 

Quando pensava que mais nada poderia suceder, eis que, numa noite de forte chuvada, a parede sul se afastou ligeiramente e surgiu um camiseiro em castanho, de madeira maciça e linhas rectas, mas com alguns apontamentos arredondados. Não consigo perceber porque apareceu. Nunca fui pessoa de usar camisas, daí nunca ter entendido a sua utilidade. Tem-me servido para guardar todas aquelas coisas que não me servem para nada, mas que, um dia, garantidamente, servirão. Embora eu tenha a certeza de que isso é apenas uma desculpa para açambarcar e não deitar nada fora. 

Até hoje ninguém me consegue tirar da ideia que foi esta minha mania de guardar tudo bem organizado, que fez surgir o roupeiro. Recordo, como se fosse ontem, aquela tarde de Verão em que uma onda de calor assolou a cidade. Estava indeciso entre abrir ou manter fechada a janela do lado norte quando a parede se afastou e ele surgiu. Desde esse dia que recebe as roupas da estação do ano que termina e liberta as roupas da estação que começa. 

Neste momento tenho uma quantidade considerável de roupas de cama, desde lençóis a edredons, encostados à parede leste, a que é oposta à porta de entrada. Todos os dias aqui regresso na esperança de que a parede se tenha afastado e que um novo armário tenha aparecido. Assim teria onde as guardar. Apesar de já terem passado anos desde a última vez, continuo confiante que o meu quarto ainda não parou de crescer. 


  Leia aqui o meu conto publicado na Fábrica do Terror

quarta-feira, 18 de junho de 2025

terça-feira, 6 de maio de 2025

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Habemos papa"

 

Ergo os olhos para o monitor no exacto momento em que ele se apaga.

­— Maldito cabo que está sempre a fazer mau contacto.

Levanto-me, estendo-me por cima da secretária e, com o braço enredado nos cabos que residem por trás do painel de 27”, empurro o da energia.

Nada.

Arranco-o e volto a ligá-lo.

Nada.

— Maldito! — Praguejo, entre dentes. — Rai’s parta o cabo! — Grito.

— Mulher. — O meu marido entra no escritório. — Acho que estamos sem luz.

— E vai demorar? Preciso de acabar este relatório.

— Como queres que eu saiba? — Responde-me, com aquele olhar de fastio que o caracteriza.

— Pronto. — Bato com as mãos no tampo da mesa. — Então, vou aproveitar para ver as séries que tenho em atraso. — Levanto-me e passo por ele.

— Na televisão? — Questiona-me, quando já lhe virei as costas.

— Sim, porquê? — retruco, sem me virar.

— Porque não temos luz…

Paro, olho para o tecto e solto um grito, enquanto puxo os cabelos. Baixo e rodo a cabeça, encarando-o. Fulmino-o com o olhar.

— Um livro, então.

 

As horas passam e a luz não volta. No patamar do prédio ouço uma comoção. Pouso o livro, levanto-me do sofá e vou até ao hall de entrada. Espreito para o exterior e vejo os meus vizinhos da frente a carretar sacos de compras, para casa, à luz de lanternas. Aquilo intriga-me. Abro a porta.

— Ó Ana, foste às compras sem luz? — Pergunto.

— Luísa, Luísa! — Ela chama o meu nome como se eu estivesse em perigo. — A Europa está sem luz. É um ataque, está confirmado. Vai acabar tudo. Precisamos de estar preparadas para o pior. Temos de arrecadar o máximo possível antes que tudo acabe.

— Tens a certeza?

— Tenho. Não ouves a rádio? É um ciberataque a larga escala. Começou! Começou!

— Começou o quê? — Pergunto, mas ela já não me ouve. Corre para dentro de casa. Ouço as três fechaduras a rodarem, uma atrás da outra.

— Manel! — Grito para dentro de casa. — Mexe-te, que vamos ficar presos em casa sem nada para comer.

O trânsito é um inferno. Toda a gente está na rua. A sinfonia de buzinas é caótica. Berra-se pelos vidros abertos. Ao fim, conseguimos furar. Deixamos o carro em cima do passeio e corremos para o supermercado aos tropeções. A rua está escura, iluminada a intermitências pelos faróis dos carros que passam. Entramos. Carrinhos cheios de enlatados são empurrados uns contra os outros. As prateleiras estão vazias. No corredor do arroz, dois homens entroncados digladiam-se ao estalo e pontapé por uns sacos de arroz. Avançamos. Esbarramos num carrinho cheio de sacos de pão-de-forma. O meu marido espanta-se com a quantidade, mas o homem esguio que empurra o carrinho receia que lhe roubem o que ainda não é dele. Olha para o meu marido e rosna, mostrando os dentes. Parece o pastor alemão do meu vizinho, quando era criança, que me pregava sempre um valente susto quando passava em frente ao portão da casa dele.

Entramos no corredor dos cereais. As prateleiras estão vazias ou com sacos arrebentados. Vejo o meu marido a correr até ao fundo. Pouco depois desfila para mim, triunfante. Ergue os dois braços e ostenta uma caixa de Cerelac intacta entre as mãos.

— Habemos papa! — Ouço-o gritar, segundos antes de um homem encorpado aparecer por trás dele, em corrida, e o arremessar contra as prateleiras com uma placagem ao bom estilo da NFL.

Felizmente, o hospital tinha gerador…


sábado, 3 de maio de 2025

Texto do desafio da sessão de 01/04/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Será desta?"

 

Primeiro olhou de longe. Admirou a estrutura, a perfeição das linhas, a imponência da sua altura, e as cores que a destacavam de tudo o que a rodeava. A engenharia necessária para a criar não deixava de o surpreender.

Manteve-se ali, de pé, debaixo do sol escaldante, seguindo, com o olhar, cada linha, cada curva, cada aresta, durante um tempo que, para ele, passou num ápice.

Inspirou fundo e tomou a decisão. Deu um primeiro passo, a medo. As pernas vacilavam um pouco, mas a determinação empurrava-o e dava outro. Aos poucos, lentamente, foi-se aproximando. Ignorou os olhares que acompanhavam a sua caminhada. Ignorou as cabeças que expressavam «não» num movimento horizontal, repetido, em circuito fechado. Ignorou tudo o que se passava à sua volta.

— Será desta? — Ouviu alguém questionar. Parou e procurou a voz, mas apenas encontrou rostos fechados. Não se deixou incomodar por aquele comentário. Novo passo, um recomeço. Passo seguinte. Determinação. Foco. Objectivo. Mais um passo. Mais próximo. Quase lá.

A estrutura agigantava-se à sua frente. Um colosso de metal e plástico. Imponente. Intimidante. «Será desta?». A pergunta ressurgia na sua mente. Seria? Tinha de ser. De tantas vezes que o tentara, esta seria, garantidamente, a definitiva.

Agarrou o metal escaldante. Ergueu o pé esquerdo e colocou-o sobre a primeira barra. Elevou o corpo sobre esse pé e assentou o direito na barra acima. O metal, exposto ao sol, queimava-lhe a planta dos pés. Manteve o foco. Ignorou aquele incómodo. Ignorou os olhares que se juntavam. Que acompanhava a sua ascensão. Uma a uma, pisou as barras de metal que o levavam mais acima. Mais alto. Ergueu-se sobre todo o resto e enfrentou o destino. Estava frente a frente com aquilo que o atormentara durante horas. Aquilo que tentara enfrentar uma e outra vez, sem sucesso. Mas agora estava ali, na boca do monstro. Enfrentava o derradeiro desafio. Deu um passo incerto e parou.

— Será desta? — alguém gritou, do meio da multidão.

Olhou para baixo. Um mar de cabeças estava virado para ele. Aguardavam. Impacientavam-se, mas não desistiam.

Enfrentou novamente o seu Némesis. Inspirou fundo.

— Acho que não — murmurou.

Deu meia-volta e, lentamente, começou a descer.

— Despacha-te — ouviu gritar —, aqui há quem queira usar o escorrega.

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Quarto crescente"

  Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos...