domingo, 14 de setembro de 2025

Texto do desafio da sessão de 02/09/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Tudo passa"

 

Via as chamas ao longe. A noite sem luar impregnava-se de laranja. As sombras dançavam em redor daquilo que antes eram casas. Famílias. Vidas. O grupo parara para recuperar. Já caminhávamos desde o anoitecer. Dirigíamo-nos para norte. O Sul já estava todo tomado pelos invasores. As notícias tinham viajado até nós, mas a resistência em partir aguentara firme até à última hora. Apenas este pequeno grupo saíra da cidade a tempo. Chamaram-nos de loucos, de covardes. Vozes que agora eram consumidas pelo fogo.

­— Não vale a pena.

Olho para a minha esquerda. Um homem, dos seus cinquenta e muitos anos, talvez mesmo já na casa dos sessenta, aproximara-se e agora estava de pé a meu lado. Apesar da pouca luz, conseguia-lhe ver os traços do rosto. Este era magro, escavado. O rosto de alguém que já vira o suficiente para não ter tempo de vida para contar tudo. Apertou os braços musculados contra o peito. A luz difusa dava vida às cicatrizes que os sulcavam.

Voltei o meu olhar de volta para fogo.

— Uma vida inteira…

Fita-me.

— Como assim?

Mantenho o olhar no inferno que se espalha na base da montanha.

— O fogo. Uma vida inteira para criar algo: casa, trabalho. Providenciar para os filhos, para o futuro.

Ele volta a olhar para o braseiro que consome o que deixamos para trás.

— Não vale a pena — repetiu. — Tudo passa. Nada é para sempre.

— Nem tudo passa — retruco. — Há cicatrizes que vão fundo demais.

— Não nego que isso seja verdade. — Vira as costas ao fogo e fita-me. — Mas de que cicatrizes falamos? Das nossas ou das deles?

Afasto os olhos das chamas e cruzo-os com os dele. Fitamo-nos por um momento, em silêncio. Tento fazer sentido do que ele me disse, mas não consigo.

— As cicatrizes de tudo perder. De ver perecer nas chamas aqueles a quem chamei vizinhos, amigos. De ver a destruição de tudo o que erguemos juntos. Como podes ter dúvidas de quais cicatrizes falo?

Vejo-o sorrir.

— Essas tuas cicatrizes clamam vingança, então?

— Claro que clamam! — Sinto o rosto a aquecer. Devo estar ruborizado, mas, pela cor laranja que nos ilumina, não deve ser visível.

Ele volta a fitar o fogo.

— Também eles.

Peço-lhe que se explique. Ele roda ligeiramente o corpo e olha para mim. Percebo que me estava a provocar. A procurar a minha atenção.

— Achas que sempre vivemos aqui? — Aponta lá para baixo, para o vale. — Antes de nós viviam eles. Nós é que somos o invasor. Nós chegamos aqui e fizemos o que vês. Queimamos tudo e construímos por cima. A vingança que procuras, eles procuraram-na primeiro. Por isso te digo: tudo passa. Eles agora vão erigir a casa deles, e aqui ficarão, até ao dia em que voltarmos para cumprir a tua vingança. E o ciclo vai-se repetir.

Deu meia-volta e regressou ao grupo, sem mais uma palavra. Voltei o meu olhar para as chamas. Via-as agora por um novo prisma.

Pouco depois retomamos a marcha. Nunca mais o voltei a ver. A verdade é que nem sequer o procurei. Mas, a partir desse dia, regi a minha vida pelas suas palavras: Tudo passa. Nada é para sempre.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Quarto crescente"

 

Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos do meu ser e já antecipa a posição em que me vou colocar. No topo dos braços, o tecido coçado revela as suas entranhas. Mas por nada a troco. 

Na minha frente, a janela grande da sala mostra-me as paredes de betão que me cercam. Os campos verdejantes que me saudaram à chegada, transformados em torres cinzentas. Mas não troco esta casa por nenhuma outra. 

Levanto-me. O silêncio que reina no interior da casa é assaltado pelos sons que chegam da cidade. Carros que passam, num ritmo incessante, como ondas de um mar artificial. Pessoas que falam, apesar de nada se entender. E, em cima de todos estes ruídos, as eternas obras do outro lado da rua. Uma panóplia de sons que se foram intrometendo na minha vida e dos quais agora não me consigo livrar. 

Passo ao lado da cozinha. Os móveis castanhos de desenho antigo continuam a suplicar por substituição, mas ainda não me consegui separar deles. 

Ao fundo do corredor, a divisão que me traz a esta conversa. Fica logo após o quarto-de-banho, com os seus azulejos cinzentos e louças raiadas, como olhos de quem não dorme há várias noites. 

Ao centro a cama. Era assim, no início. Apenas a cama, ao centro. Esta visão activa memórias doces de um passado que nunca se repetirá. O que vos poderia contar desses tempos… embora agora não seja o momento mais oportuno. 

As mesas de cabeceira apareceram depois. Não combinam muito bem com a cama, confesso. O estilo trabalhado, a inclinar para um D. José de imitação barata, destoam com as linhas rectas do leito onde, todas as noites, repouso. 

Esqueci-me de referir a cadeira. Essa está lá desde que chegou a cama. Durante muito tempo foi o repouso da minha roupa. A estação onde esta aguardava para me cobrir depois do nascer do dia seguinte. Mas cedo apareceu o guarda-fatos. Reclamou toda a minha roupa e a pobre cadeira agora está vazia e saudosa, como eu, de outros tempos. 

A cómoda deu um ar da sua graça, era domingo, estava eu a ver a bola. Branca, de linhas rectas, num estilo muito moderno, contribui com uma certa graciosidade para o caos de estilos que caracteriza esta minha habitação. 

Quando pensava que mais nada poderia suceder, eis que, numa noite de forte chuvada, a parede sul se afastou ligeiramente e surgiu um camiseiro em castanho, de madeira maciça e linhas rectas, mas com alguns apontamentos arredondados. Não consigo perceber porque apareceu. Nunca fui pessoa de usar camisas, daí nunca ter entendido a sua utilidade. Tem-me servido para guardar todas aquelas coisas que não me servem para nada, mas que, um dia, garantidamente, servirão. Embora eu tenha a certeza de que isso é apenas uma desculpa para açambarcar e não deitar nada fora. 

Até hoje ninguém me consegue tirar da ideia que foi esta minha mania de guardar tudo bem organizado, que fez surgir o roupeiro. Recordo, como se fosse ontem, aquela tarde de Verão em que uma onda de calor assolou a cidade. Estava indeciso entre abrir ou manter fechada a janela do lado norte quando a parede se afastou e ele surgiu. Desde esse dia que recebe as roupas da estação do ano que termina e liberta as roupas da estação que começa. 

Neste momento tenho uma quantidade considerável de roupas de cama, desde lençóis a edredons, encostados à parede leste, a que é oposta à porta de entrada. Todos os dias aqui regresso na esperança de que a parede se tenha afastado e que um novo armário tenha aparecido. Assim teria onde as guardar. Apesar de já terem passado anos desde a última vez, continuo confiante que o meu quarto ainda não parou de crescer. 


  Leia aqui o meu conto publicado na Fábrica do Terror

quarta-feira, 18 de junho de 2025

terça-feira, 6 de maio de 2025

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Habemos papa"

 

Ergo os olhos para o monitor no exacto momento em que ele se apaga.

­— Maldito cabo que está sempre a fazer mau contacto.

Levanto-me, estendo-me por cima da secretária e, com o braço enredado nos cabos que residem por trás do painel de 27”, empurro o da energia.

Nada.

Arranco-o e volto a ligá-lo.

Nada.

— Maldito! — Praguejo, entre dentes. — Rai’s parta o cabo! — Grito.

— Mulher. — O meu marido entra no escritório. — Acho que estamos sem luz.

— E vai demorar? Preciso de acabar este relatório.

— Como queres que eu saiba? — Responde-me, com aquele olhar de fastio que o caracteriza.

— Pronto. — Bato com as mãos no tampo da mesa. — Então, vou aproveitar para ver as séries que tenho em atraso. — Levanto-me e passo por ele.

— Na televisão? — Questiona-me, quando já lhe virei as costas.

— Sim, porquê? — retruco, sem me virar.

— Porque não temos luz…

Paro, olho para o tecto e solto um grito, enquanto puxo os cabelos. Baixo e rodo a cabeça, encarando-o. Fulmino-o com o olhar.

— Um livro, então.

 

As horas passam e a luz não volta. No patamar do prédio ouço uma comoção. Pouso o livro, levanto-me do sofá e vou até ao hall de entrada. Espreito para o exterior e vejo os meus vizinhos da frente a carretar sacos de compras, para casa, à luz de lanternas. Aquilo intriga-me. Abro a porta.

— Ó Ana, foste às compras sem luz? — Pergunto.

— Luísa, Luísa! — Ela chama o meu nome como se eu estivesse em perigo. — A Europa está sem luz. É um ataque, está confirmado. Vai acabar tudo. Precisamos de estar preparadas para o pior. Temos de arrecadar o máximo possível antes que tudo acabe.

— Tens a certeza?

— Tenho. Não ouves a rádio? É um ciberataque a larga escala. Começou! Começou!

— Começou o quê? — Pergunto, mas ela já não me ouve. Corre para dentro de casa. Ouço as três fechaduras a rodarem, uma atrás da outra.

— Manel! — Grito para dentro de casa. — Mexe-te, que vamos ficar presos em casa sem nada para comer.

O trânsito é um inferno. Toda a gente está na rua. A sinfonia de buzinas é caótica. Berra-se pelos vidros abertos. Ao fim, conseguimos furar. Deixamos o carro em cima do passeio e corremos para o supermercado aos tropeções. A rua está escura, iluminada a intermitências pelos faróis dos carros que passam. Entramos. Carrinhos cheios de enlatados são empurrados uns contra os outros. As prateleiras estão vazias. No corredor do arroz, dois homens entroncados digladiam-se ao estalo e pontapé por uns sacos de arroz. Avançamos. Esbarramos num carrinho cheio de sacos de pão-de-forma. O meu marido espanta-se com a quantidade, mas o homem esguio que empurra o carrinho receia que lhe roubem o que ainda não é dele. Olha para o meu marido e rosna, mostrando os dentes. Parece o pastor alemão do meu vizinho, quando era criança, que me pregava sempre um valente susto quando passava em frente ao portão da casa dele.

Entramos no corredor dos cereais. As prateleiras estão vazias ou com sacos arrebentados. Vejo o meu marido a correr até ao fundo. Pouco depois desfila para mim, triunfante. Ergue os dois braços e ostenta uma caixa de Cerelac intacta entre as mãos.

— Habemos papa! — Ouço-o gritar, segundos antes de um homem encorpado aparecer por trás dele, em corrida, e o arremessar contra as prateleiras com uma placagem ao bom estilo da NFL.

Felizmente, o hospital tinha gerador…


Texto do desafio da sessão de 02/09/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Tudo passa"

  Via as chamas ao longe. A noite sem luar impregnava-se de laranja. As sombras dançavam em redor daquilo que antes eram casas. Famílias. ...