«Tudo Por Ti»
Lê AQUI
Neste Blog publico as histórias e os contos que escrevo pelo puro prazer da escrita.
Já se encontra disponível o terceiro volume d'Os Melhores Contos da Fábrica do Terror, onde, conjuntamente com outros 62 contos de autores nacionais, se encontra o meu, intitulado: O Meu Avô.
Mais informações e encomendas AQUI
Via as chamas ao longe. A noite sem luar impregnava-se de laranja. As sombras dançavam em redor daquilo que antes eram casas. Famílias. Vidas. O grupo parara para recuperar. Já caminhávamos desde o anoitecer. Dirigíamo-nos para norte. O Sul já estava todo tomado pelos invasores. As notícias tinham viajado até nós, mas a resistência em partir aguentara firme até à última hora. Apenas este pequeno grupo saíra da cidade a tempo. Chamaram-nos de loucos, de covardes. Vozes que agora eram consumidas pelo fogo.
— Não vale a pena.
Olho para a minha esquerda. Um homem, dos seus cinquenta e muitos anos, talvez mesmo já na casa dos sessenta, aproximara-se e agora estava de pé a meu lado. Apesar da pouca luz, conseguia-lhe ver os traços do rosto. Este era magro, escavado. O rosto de alguém que já vira o suficiente para não ter tempo de vida para contar tudo. Apertou os braços musculados contra o peito. A luz difusa dava vida às cicatrizes que os sulcavam.
Voltei o meu olhar de volta para fogo.
— Uma vida inteira…
Fita-me.
— Como assim?
Mantenho o olhar no inferno que se espalha na base da montanha.
— O fogo. Uma vida inteira para criar algo: casa, trabalho. Providenciar para os filhos, para o futuro.
Ele volta a olhar para o braseiro que consome o que deixamos para trás.
— Não vale a pena — repetiu. — Tudo passa. Nada é para sempre.
— Nem tudo passa — retruco. — Há cicatrizes que vão fundo demais.
— Não nego que isso seja verdade. — Vira as costas ao fogo e fita-me. — Mas de que cicatrizes falamos? Das nossas ou das deles?
Afasto os olhos das chamas e cruzo-os com os dele. Fitamo-nos por um momento, em silêncio. Tento fazer sentido do que ele me disse, mas não consigo.
— As cicatrizes de tudo perder. De ver perecer nas chamas aqueles a quem chamei vizinhos, amigos. De ver a destruição de tudo o que erguemos juntos. Como podes ter dúvidas de quais cicatrizes falo?
Vejo-o sorrir.
— Essas tuas cicatrizes clamam vingança, então?
— Claro que clamam! — Sinto o rosto a aquecer. Devo estar ruborizado, mas, pela cor laranja que nos ilumina, não deve ser visível.
Ele volta a fitar o fogo.
— Também eles.
Peço-lhe que se explique. Ele roda ligeiramente o corpo e olha para mim. Percebo que me estava a provocar. A procurar a minha atenção.
— Achas que sempre vivemos aqui? — Aponta lá para baixo, para o vale. — Antes de nós viviam eles. Nós é que somos o invasor. Nós chegamos aqui e fizemos o que vês. Queimamos tudo e construímos por cima. A vingança que procuras, eles procuraram-na primeiro. Por isso te digo: tudo passa. Eles agora vão erigir a casa deles, e aqui ficarão, até ao dia em que voltarmos para cumprir a tua vingança. E o ciclo vai-se repetir.
Deu meia-volta e regressou ao grupo, sem mais uma palavra. Voltei o meu olhar para as chamas. Via-as agora por um novo prisma.
Pouco depois retomamos a marcha. Nunca mais o voltei a ver. A verdade é que nem sequer o procurei. Mas, a partir desse dia, regi a minha vida pelas suas palavras: Tudo passa. Nada é para sempre.
Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos do meu ser e já antecipa a posição em que me vou colocar. No topo dos braços, o tecido coçado revela as suas entranhas. Mas por nada a troco.
Na minha frente, a janela grande da sala mostra-me as paredes de betão que me cercam. Os campos verdejantes que me saudaram à chegada, transformados em torres cinzentas. Mas não troco esta casa por nenhuma outra.
Levanto-me. O silêncio que reina no interior da casa é assaltado pelos sons que chegam da cidade. Carros que passam, num ritmo incessante, como ondas de um mar artificial. Pessoas que falam, apesar de nada se entender. E, em cima de todos estes ruídos, as eternas obras do outro lado da rua. Uma panóplia de sons que se foram intrometendo na minha vida e dos quais agora não me consigo livrar.
Passo ao lado da cozinha. Os móveis castanhos de desenho antigo continuam a suplicar por substituição, mas ainda não me consegui separar deles.
Ao fundo do corredor, a divisão que me traz a esta conversa. Fica logo após o quarto-de-banho, com os seus azulejos cinzentos e louças raiadas, como olhos de quem não dorme há várias noites.
Ao centro a cama. Era assim, no início. Apenas a cama, ao centro. Esta visão activa memórias doces de um passado que nunca se repetirá. O que vos poderia contar desses tempos… embora agora não seja o momento mais oportuno.
As mesas de cabeceira apareceram depois. Não combinam muito bem com a cama, confesso. O estilo trabalhado, a inclinar para um D. José de imitação barata, destoam com as linhas rectas do leito onde, todas as noites, repouso.
Esqueci-me de referir a cadeira. Essa está lá desde que chegou a cama. Durante muito tempo foi o repouso da minha roupa. A estação onde esta aguardava para me cobrir depois do nascer do dia seguinte. Mas cedo apareceu o guarda-fatos. Reclamou toda a minha roupa e a pobre cadeira agora está vazia e saudosa, como eu, de outros tempos.
A cómoda deu um ar da sua graça, era domingo, estava eu a ver a bola. Branca, de linhas rectas, num estilo muito moderno, contribui com uma certa graciosidade para o caos de estilos que caracteriza esta minha habitação.
Quando pensava que mais nada poderia suceder, eis que, numa noite de forte chuvada, a parede sul se afastou ligeiramente e surgiu um camiseiro em castanho, de madeira maciça e linhas rectas, mas com alguns apontamentos arredondados. Não consigo perceber porque apareceu. Nunca fui pessoa de usar camisas, daí nunca ter entendido a sua utilidade. Tem-me servido para guardar todas aquelas coisas que não me servem para nada, mas que, um dia, garantidamente, servirão. Embora eu tenha a certeza de que isso é apenas uma desculpa para açambarcar e não deitar nada fora.
Até hoje ninguém me consegue tirar da ideia que foi esta minha mania de guardar tudo bem organizado, que fez surgir o roupeiro. Recordo, como se fosse ontem, aquela tarde de Verão em que uma onda de calor assolou a cidade. Estava indeciso entre abrir ou manter fechada a janela do lado norte quando a parede se afastou e ele surgiu. Desde esse dia que recebe as roupas da estação do ano que termina e liberta as roupas da estação que começa.
Neste momento tenho uma quantidade considerável de roupas de cama, desde lençóis a edredons, encostados à parede leste, a que é oposta à porta de entrada. Todos os dias aqui regresso na esperança de que a parede se tenha afastado e que um novo armário tenha aparecido. Assim teria onde as guardar. Apesar de já terem passado anos desde a última vez, continuo confiante que o meu quarto ainda não parou de crescer.
No n.º 9 da revista PALAVRAR encontra-se o meu conto «Tudo Por Ti» Lê AQUI