A ALEG(O)RIA DO CLIMA

Certo dia Espécie Humana decidiu experimentar a sua nova snowboard. O tempo estava agradável, o ar fresco e limpo, e os montes cheios de neve. Para onde olhasse tinha lindas colinas onde podia deslizar alegremente e sem preocupações. Assim, escolheu uma montanha generosa, coberta de neve branca, à qual escalou, com alguma dificuldade, até atingir o seu topo. Tudo estava a favor da sua vontade. Para além do céu limpo e do ar fresco, soprava apenas uma leve brisa que não descia do ponto de agradável. Pegou na sua snowboard, escolheu o lado mais solarengo da montanha, que, por sinal, parecia o mais agradável, e começou a deslizar.
 
A princípio tudo corria bem, a inclinação não era muita e a velocidade parecia constante. Espécie Humana ficou muito contente com o seu progresso, a vida corria-lhe bem, a descida era confortável e cada vez mais agradável. De quando em vez tinha um ligeiro solavanco, quando se cruzava com alguma planta, ou mesmo animal, que se encontrava envolvido na neve, mas, depois do breve solavanco, a situação ficava arrumada, e continuava o seu progresso pela face da montanha.
 
O tempo passou e a montanha começou a ficar diferente, a inclinar mais, o que trazia mais velocidade. Espécie Humana começou a sentir-se dividida nos seus pensamentos, uma grande parte de si estava a adorar aquela descida, agora até mais acelerada, outra parte queria também sentir essa alegria e esse conforto, mas outra começava a recear o destino daquela descida. Espécie Humana achou que aqueles pensamentos eram apenas distrações, receios descabidos de uma mente retrógrada que só queria destruir o prazer e o conforto da descida, e ignorou-os. Continuando o acentuar da descida, com algum aumento dos solavancos, agora tendo alguns de maiores dimensões, e começando a encontrar zonas de neve não tão lisa, vislumbrou, ao longe, umas silhuetas. À mente de Espécie Humana voltaram os pensamentos de que a descida iria correr mal, porque já mostrava indícios disso e que já se viam, ao longe, as sombras das rochas onde iria embater. Espécie Humana voltou a afastar esses pensamentos, solavancos sempre tivera, era algo natural, e as silhuetas eram meras ilusões de ótica. Rochas era coisa que não existia. Assim, mesmo com os constantes protestos dessa pequena parte da sua mente, continuou a descida, imperturbável.
 
Com o avançar, as silhuetas começaram a ganhar um pouco de definição e então, Espécie Humana decidiu abrandar a sua descida. Usando os bastões de apoio, começou a tentar forçá-los contra o chão para abrandar a sua descida. No entanto, uma grande parte da sua mente dizia-lhe que aquilo era asneira, que nada estava a conseguir, estava apenas a piorar a descida, que era fantástica e que não gerava qualquer preocupação. Apesar das suas tentativas e esforços, muitas vezes frustrados por incertezas e dúvidas, Espécie Humana não conseguiu abrandar a sua descida. Estava agora numa inclinação que requeria um esforço hercúleo para conseguir abrandar, quanto mais parar. Espécie Humana, apesar de nem toda a sua mente aceitar, compreendia agora que as silhuetas que há tanto tempo se mostravam no seu horizonte, eram, efectivamente, rochas, e que era o seu destino colidir com elas. Ficava, agora, ao seu alcance apenas tentar reduzir a velocidade para minimizar as consequências do impacto.

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