Texto da sessão de 11/10/2023 da "A Velha Escrita"

Mais uma manhã, mais uma semana que começava. O tempo estava propício para uma caminhada pela cidade, o observatório não era longe e o exercício fazia-lhe falta. Estava animado, tinha reunido toda a sua coragem durante o fim de semana e, por estes dias, iria conseguir terminar aquela conversa, aquela que não seguira o rumo que ele esperava. A sua incapacidade de ultrapassar o receio da rejeição ultrapassava a sua capacidade para seguir em frente com o seu intento. Mas não era a hora nem o momento de pensar nesse assunto. De passada larga, galgou a via pedonal que acompanhava as paragens do hoverbus. Os edifícios gigantes que o circundavam criavam um mundo de luz e sombra que lhe fazia sempre lembrar a pitoresca luta que decorria dentro dele. Sentia-se um idiota, certamente os receios que tinha eram infundados, apenas reflexos da timidez que sempre o acompanhou.

Por todo o lado pairavam anúncios holográficos da nova grande descoberta que viera agora a publico. Devido ao seu trabalho, a sua pesquisa constante e sistemática pelas estrelas que rodeavam aquele que era chamado de planeta vermelho, fazia parte da equipa que tinha descoberto Erbos3, o planeta que, por todos os indicadores, localização e sistema solar em que se integrava, era similar à Terra, o planeta-mãe.

 - Bom dia, Dr. – Disse-lhe o porteiro eletrónico do observatório. Por muito jovial que fosse a voz sintética, soava-lhe sempre a falso, mas nunca deixara de responder no mesmo tom.

Deteve-se, inspirou fundo... A Marília já deveria estar no bar a tomar o seu café da manhã. Garantidamente, os seus olhos azuis, como os céus antigos da Terra, estariam a brilhar, e já sabia que o iria receber com aquele sorriso que o derretia. Demorara demasiado tempo para perceber que estava perdidamente apaixonado por ela, demorara demasiado tempo para conseguir dirigir-lhe a palavra, para conseguir construir uma conversa com ela. Por várias vezes tentara transmitir, por palavras, aquilo que o corpo dele gritava, mas, pelas razões mais inusitadas, fora sempre interrompido. O trabalho no observatório tinha-se tornado caótico e acelerado desde a descoberta, e ele só conseguira reunir a coragem depois desta, como se aquele evento lhe tivesse dado um alento especial, uma força que não tinha, mas que ainda não se mostrara suficiente, uma e outra vez... até hoje, pois hoje ele tinha tomado a decisão, nem que tivesse de a agarrar e olhá-la nos olhos, de abrir-lhe o seu coração.

Avançou, o bar estava ao dobrar da esquina e ela estava sempre na primeira mesa que se via da porta... mas, desta vez, a mesa estava vazia. Congelou, ela não estava na mesa. Olhou em volta, em nenhum lado a conseguia ver. Viu a Joana, andavam sempre juntas, por isso, deveria saber onde ela estava. Aproximou-se dela.

- Bom-dia, Joana.

- Bom dia... - respondeu ela, com um ar que demonstrava uma certa admiração, embora ele não compreendesse porquê.

- A Marília? – perguntou, receando, instintivamente, a resposta, não sabia bem porquê, mas algo não batia certo.

- Não viste o teu holofone? Ele enviou-te uma mensagem. Ela vai a Erbos3, faz parte da expedição de exploração.

- Como? – todo ele por dentro era gelo, o mundo começava-se a desmoronar.

- Ela não te chegou a dizer? Candidatou-se e como ela é única na sua especialidade, foi logo chamada, mas vê a mensagem que ela deve explicar tudo.

- Mas não há nenhuma forma de conseguir falar com ela?

- Sabes bem que não - replicou a Joana - o nível de segurança que envolve este projecto não o permite, acho que até foste tu um dos que mais defendeu a necessidade do secretismo.

Afastou-se sem mais proferir uma palavra. Erbos3, ela ia para Erbos3, uma viagem só de ida. Ficava com um diálogo interrompido, nunca o poderia retomar, mesmo que a conseguisse, de alguma forma, contactar. Erbos3... um abismo intransponível rasgava-se entre os dois...

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "Diálogos Interrompidos, Abismos Intransponíveis"]

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