sábado, 21 de dezembro de 2024

CASA DE SANT'ANNA

 

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"A morte da jovem Teodora De Sant’Anna despoleta sentimentos e memórias, que atravessam várias gerações de uma família, num entrecruzar das histórias dos seus vários personagens.Com início no século XIX e prolongando-se pelo começo do século XX, esta é a história da família De Sant’Anna. Uma história de tradição, revolta, ódio, destino e um amor que transcende a própria morte. Através de onze histórias, do presente e do passado, constrói-se a vida da família De Sant’Anna, revelam-se os seus amores e desvendam os seus segredos."

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

BRUMA DE OUTONO

Empurrou a pesada porta de carvalho que rangeu sobre os gonzos. Saiu para o jardim. O dia ainda não tinha nascido. Desceu os degraus e sentiu a terra macia debaixo dos pés. Uma leve brisa gelada arrastava-se pelo chão e empurrava as folhas secas que caíam das árvores. Naquele lusco-fusco, o arvoredo, de ramos despidos pelo Outono, parecia gigantes de braços erguidos e dedos esguios.

Lentamente, uma bruma começou a adensar-se ao seu redor. Com passos lentos e pesados afastou-se da casa. Era chegada a hora. Sabia-o. Apenas o sabia. Era algo que lhe vinha de dentro. Uma certeza inabalável, e, no entanto, nada de concreto justificava aquela certeza. No jardim, alguns tímidos tufos de erva teimavam em pincelar de verde o castanho reinante. No entanto, àquela luz, tudo era cinzento. A bruma, até ali limitada a cobrir o chão, avolumava-se, preenchendo, silenciosamente, todos o jardim. Já não conseguia vislumbrar a casa. Não deixara nenhuma luz acesa. Nada penetrava a densa bruma que o envolvia, nem mesmo a Lua em quarto crescente que, até àquela hora, lhe permitira ver as árvores e os muros da propriedade. Agora cercava-o apenas o nada. Não um nada absoluto, mas um nada visível. Continuou a avançar. Caminhava sem rumo. Não sabia se a direito, se em círculos. Já nem o chão era visível. Apenas sentia a maciez do que deduzia ser terra e erva.

A bruma agitou-se a seu lado. Pelo canto do olho, fugazmente, pode ver um vulto negro. Como prometido, anos antes, eles chegavam. Era a ele que eles queriam, e nada os impediria de o levar.

Lutara, durante anos, contra aquele desfecho. Mas a sua inevitabilidade quebrara-o. Por muito que se afastasse, por muito que procurasse esquecer, acabava sempre por ir dar àquela casa. Era uma existência circular. Quanto mais se afastava, mais se aproximava. Todos os Outonos evitara a bruma. Todos os Outonos se afastara. Mas os sussurros a meio da noite eram cada vez mais intensos. Cada vez maior era a dor que o consumia de dentro para fora. Noites sem dormir, massacrado pelas vozes, e dias ensombrados por vultos nas sombras, tinham-lhe quebrado o espírito e a vontade de lutar.

Regressara definitivamente. Não voltaria a fugir.

A bruma agitou-se novamente. O vulto permaneceu no seu campo de visão por um segundo, antes de se perder no nevoeiro. Parou a marcha. Não sabia onde estava, mas sabia que estava onde devia estar. Os vultos circulavam à sua volta. A bruma, de tão densa que era, formava cornucópias que se desvaneciam. Criaturas esqueléticas, negras, de membros longos e estreitos, como esqueletos apenas cobertos de pele, rondavam-no, cada vez mais perto.

Deixou-se cair de joelhos no solo. Baixou a cabeça e fechou os olhos. O destino alcançava-o, finalmente.

Momentos depois, o sol começou a lamber a terra com a sua luz. Lentamente, conforme este se elevava no firmamento, a bruma foi dissipando. Silenciosamente como chegou, a bruma retirou-se, revelando uma casa vazia, de porta aberta, onde habitavam apenas almas do passado.

 

Sessão de 04/12/2024 d’A Velha Escrita com o tema: “As brumas de Outono”.


 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

BLOQUEIO DE ESCRITA

 

Olhou para o teclado. Já apagara mais vezes o texto do que as que o escrevera. Sabia que tal proporção era matematicamente impossível, mas era assim que se sentia. Se ainda fosse como no tempo em que começou a escrever, com a sua velhinha Olivetti, de teclas perras, já teria um monte de bolas de papel amarrotado junto aos pés. Para não falar nas dores nos dedos. Se calhar, nesses tempos, escrevia melhor porque o horizonte de sofrimento se ia aproximando conforme avançava a escrita. Todos os momentos em que os dedos não sofriam cãibras deveriam ser produtivos. Agora, com um computador de teclas moles, podia escrever horas a fio sem problemas de maior. Como não imprimia, perdia a noção aos começos abandonados. Nos velhos tempos, chegara a reciclar alguns desses começos, dando-lhes nova vida noutras histórias. Por vezes, melhores do que a história que abortara aquele começo.

Olhou para o cursor a piscar. Haveria visão mais enervante do que aquela? Escusado seria dizer que a velhinha Olivetti não tivera cursor e que nunca o enervara tanto como aquele maldito traço a piscar.

Recostou-se na cadeira e olhou para a paisagem. Nem se isolando ali, naquele café no sopé das montanhas, onde o sossego era rei, conseguia ter paz de alma para criar o seu novo best seller. Já ponderara se não estaria a ter um bloqueio devido à pressão de dar continuidade ao seu sucesso esmagador, “A noite das margaridas”, mas a situação não era nova. Até já sofrera maior pressão. Fora nessas alturas que se elevara acima de todas as expectativas e criara as suas mais memoráveis obras.

Levantou-se. Esticou o corpo com um estalar das costas. A idade já não contribuía para aquelas longas maratonas sentado. Pediu um café. Esvaziou os dois pacotes de açúcar. Café amargo só contribuía para o enervar ainda mais. Mexeu-o lentamente enquanto aguardava que arrefecesse. Estava a 30 km de casa, refugiado dos ruídos da cidade e do frenesim da família. As condições ideais estavam todas reunidas, mas, mesmo assim, a tela continuava em branco. Olhou para o relógio. Ainda dispunha de um par de horas para escrever.

Sorveu o café. Continuava quente. Sentou-se e olhou, novamente, para o monitor em branco. Não se podia deixar vencer pela alvura da tela.

­­— Esperança e inspiração, se faz favor. É o que mais preciso — disse, para si, como a tentar convencer-se de que chegara o momento.

Voltou a mexer o café. Lentamente, enquanto o soprava, uma ideia começou-lhe a aflorar. «E se…?» Pensou. Voltou a sorver o café, que já não estava tão quente. Pelo menos a queimadura já não o incomodava. «Mas é isso!» Os pensamentos começavam a entrar em ebulição. As ideias atropelavam-se umas às outras. Era um verdadeiro tsunami. Podia ver a história toda a passar-lhe em frente aos olhos. Estava extasiado com o que a sua imaginação construía. Um sucesso garantido.

Pousou a chávena na borda da mesa, tal era a ânsia de escrever, sem se preocupar quando esta tombou e se desfez em pedaços. Precisava escrever o mais rápido que a artrose nos dedos permitisse.

O branco da tela desapareceu. O computador indicava que se ia desligar.

 O carregador ficara em casa…

 

 

Texto redigido na sessão de 06 de Novembro de 2024 d’A Velha Escrita.

Tema: ESPERANÇA E INSPIRAÇÃO, SE FAZ FAVOR

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O PRIMEIRO CASO

 

A cena era grotesca. Poderia dizer que, pela profissão, já estava habituado, mas era mentira. Ainda não acumulara experiência suficiente para chegar a esse ponto. Era difícil ter experiência acumulada quando se presenciava a primeira cena de homicídio. A transição do Trânsito para Homicídios não era fácil. Era o caloiro, o noviço, o pobre a quem os outros queriam atirar com tudo para lhe alimentar os pesadelos. E ali estava, na companhia de dois detetives experientes já endurecidos por um sem número de situações idênticas.

Fizeram-no percorrer todas as divisões da casa. Fizeram questão em mostrar tudo. O sangue que pintava de vermelho a alcatifa, as rosas, agora murchas, de uma jarra partida, e as paredes.

- Olha lá. – Disse um dos detetives para o outro, apontando para a parede. – Isto parece um quadro que vi no fim de semana no Serralves. Se tivesse apanhado as cortinas brancas dava para cortar e encaixilhar.

- Ainda fazíamos umas boas massas, de certeza. – Respondeu o outro.

Todo o circo de atrocidades foi presenteado ao novato. Depois do sangue vieram pedaços de matéria mole meio acinzentada, na ponta de um ferro enferrujado e bicudo. A conclusão de estarem perante a arma do crime era evidente, mas os detetives detiveram-se, longamente, na sua observação, debatendo todos os pormenores sórdidos de como fora utilizada.

Só quando se deram por satisfeitos pela cor esverdeada do rosto do novato, e os seus sucessivos arranques de quem segura o vómito, é que se dirigiram para o quarto-de-banho, local onde se encontrava depositado o corpo.

- Grande Inácio, que tens para nós? – Perguntou um dos detetives ao entrarem na divisão.

O pequeno e escanzelado médico legista deslizou os óculos de ver ao perto pelo nariz e olhou para ele.

- O costume, Mendonça. Um corpo destroçado e muitas poucas evidências do crime. Trilha com cuidado aqui dentro. – Apontou para o corpo. - Este foi detetado pelo cheiro.

- Isso já nós deduzimos desde que passamos a soleira do edifício. – Respondeu Mendonça. – O corpo, estava na banheira?

- Estava. – Retorquiu Inácio. – Pelos indícios esteve duas semanas de molho como o bacalhau.

- Olha lá, ó Inácio. – Mendonça esfregava o queixo. – Mas quem é que deixa o bacalhau de molho durante duas semanas?

- Porquê? É o que faço sempre. – Respondeu Inácio, indignado.

- Eu também faço assim. – O segundo detetive entrava na conversa. O novato não conseguia tirar os olhos do imenso buraco que o corpo, deitado de borco, tinha na nuca. O cheiro a podre inundava-lhe as narinas e quase o fazia perder os sentidos. O estômago reclamava veementemente, mas não podia dar parte de fraco e tinha de aguentar.

- Mas ao menos vais mudando a água? – Mendonça estava estupefacto.

- Eu faço isso, faço. – Retorquiu o outro detetive.

- Para quê?! – Perguntou Inácio. - É para demolhar, é para demolhar. Duas semanas numa bacia grande. É assim que faço.

- E que tal é o sabor do bacalhau, depois?

- Ah, eu não como. Quem comia bacalhau era a minha ex-mulher.

- Antes ou depois de ser ex? – Perguntou Mendonça, com uma gargalhada.

Nesse momento o novato explodiu, contaminando a cena do crime e destruindo todas as parcas evidências que poderiam ter sido analisadas.

Os dois detetives e o médico legista olharam em volta, desolados. Dificilmente aquilo teria solução, agora.

Mendonça olhou para o novato. Por gestos disse-lhe para ficar no local. Fez um sinal a chamar o outro detetive e dirigiu-se para a porta. Já transpusera a saída quando gritou.

- Encerraste com mestria o teu primeiro caso, novato.

 

 

Texto redigido na sessão de 04 de setembro de 2024 d’A Velha Escrita.

Tema: DUAS SEMANAS DE MOLHO COMO O BACALHAU


  Leia  aqui o meu conto publicado na Fábrica do Terror