A cena
era grotesca. Poderia dizer que, pela profissão, já estava habituado, mas era
mentira. Ainda não acumulara experiência suficiente para chegar a esse ponto.
Era difícil ter experiência acumulada quando se presenciava a primeira cena de
homicídio. A transição do Trânsito para Homicídios não era fácil. Era o
caloiro, o noviço, o pobre a quem os outros queriam atirar com tudo para lhe
alimentar os pesadelos. E ali estava, na companhia de dois detetives
experientes já endurecidos por um sem número de situações idênticas.
Fizeram-no
percorrer todas as divisões da casa. Fizeram questão em mostrar tudo. O sangue
que pintava de vermelho a alcatifa, as rosas, agora murchas, de uma jarra
partida, e as paredes.
- Olha
lá. – Disse um dos detetives para o outro, apontando para a parede. – Isto
parece um quadro que vi no fim de semana no Serralves. Se tivesse apanhado as
cortinas brancas dava para cortar e encaixilhar.
- Ainda
fazíamos umas boas massas, de certeza. – Respondeu o outro.
Todo o
circo de atrocidades foi presenteado ao novato. Depois do sangue vieram pedaços
de matéria mole meio acinzentada, na ponta de um ferro enferrujado e bicudo. A
conclusão de estarem perante a arma do crime era evidente, mas os detetives
detiveram-se, longamente, na sua observação, debatendo todos os pormenores
sórdidos de como fora utilizada.
Só quando
se deram por satisfeitos pela cor esverdeada do rosto do novato, e os seus sucessivos
arranques de quem segura o vómito, é que se dirigiram para o quarto-de-banho,
local onde se encontrava depositado o corpo.
- Grande
Inácio, que tens para nós? – Perguntou um dos detetives ao entrarem na divisão.
O pequeno
e escanzelado médico legista deslizou os óculos de ver ao perto pelo nariz e
olhou para ele.
- O
costume, Mendonça. Um corpo destroçado e muitas poucas evidências do crime.
Trilha com cuidado aqui dentro. – Apontou para o corpo. - Este foi detetado
pelo cheiro.
- Isso já
nós deduzimos desde que passamos a soleira do edifício. – Respondeu Mendonça. –
O corpo, estava na banheira?
- Estava.
– Retorquiu Inácio. – Pelos indícios esteve duas semanas de molho como o bacalhau.
- Olha
lá, ó Inácio. – Mendonça esfregava o queixo. – Mas quem é que deixa o bacalhau
de molho durante duas semanas?
- Porquê?
É o que faço sempre. – Respondeu Inácio, indignado.
- Eu
também faço assim. – O segundo detetive entrava na conversa. O novato não
conseguia tirar os olhos do imenso buraco que o corpo, deitado de borco, tinha
na nuca. O cheiro a podre inundava-lhe as narinas e quase o fazia perder os
sentidos. O estômago reclamava veementemente, mas não podia dar parte de fraco
e tinha de aguentar.
- Mas ao
menos vais mudando a água? – Mendonça estava estupefacto.
- Eu faço
isso, faço. – Retorquiu o outro detetive.
- Para
quê?! – Perguntou Inácio. - É para demolhar, é para demolhar. Duas semanas numa
bacia grande. É assim que faço.
- E que
tal é o sabor do bacalhau, depois?
- Ah, eu
não como. Quem comia bacalhau era a minha ex-mulher.
- Antes
ou depois de ser ex? – Perguntou Mendonça, com uma gargalhada.
Nesse
momento o novato explodiu, contaminando a cena do crime e destruindo todas as
parcas evidências que poderiam ter sido analisadas.
Os dois
detetives e o médico legista olharam em volta, desolados. Dificilmente aquilo
teria solução, agora.
Mendonça
olhou para o novato. Por gestos disse-lhe para ficar no local. Fez um sinal a
chamar o outro detetive e dirigiu-se para a porta. Já transpusera a saída
quando gritou.
-
Encerraste com mestria o teu primeiro caso, novato.
Texto
redigido na sessão de 04 de setembro de 2024 d’A Velha Escrita.
Tema: DUAS
SEMANAS DE MOLHO COMO O BACALHAU