domingo, 12 de maio de 2024

Texto do desafio da sessão de 08/05/2024 da "A Velha Escrita"

Dona Eusténia reclinava-se para trás, mas não muito, no banco junto ao balcão. Não muito porque a possibilidade de tombar para trás era real e eminente. Após uma breve e lenta ginga, tombou de novo para o balcão e apoiou-se no seu beiral.

A noite estava fresca, mas, dentro do bar, o calor humano da enchente que o preenchia fazia esquecer a gélida chegada do Outono.

Deslizou o indicador direito pela borda do copo que tinha à sua frente. No interior, o líquido acastanhado prometia uma anestesia temporária das maleitas da vida.

Sentiu uma brusca aragem, que a arrepiou até aos ossos, quando a porta do bar foi aberta. Havia sempre lugar para mais um. O frio incitava a entrar e inibia a sair.

Apesar do barulho das conversas e do chocar de copos, conseguiu identificar uns passos que lhe eram bastante familiares. Já não se recordava há quanto tempo os conhecia.

Não tardou a uma figura bastante familiar dar com ela. A protuberante barriga dificultava o uso do banco, mas, com algum engenho e experiência de outras muitas noites, o abade sentou-se no lugar à esquerda dela.

- Dona Eusténia. – Cumprimentou o abade. – Bons olhos a vejam! – Ela olhou para ele. No rosto via-lhe o eterno sorriso. Sempre fora a epítome da boa disposição.

- Não sei se serão os seus, meu caro abade. – Respondeu. – Por esses óculos com lentes de fundo de garrafa que vejo pendurados nos seus olhos.

O abade soltou uma gargalhada. Estava divertido, como sempre, o que conseguia ser bastante irritante.

- Então, o que traz a senhora por aqui?

- Desgraças, o que havia de ser?

- Ah, duvido muito. Duvido mesmo.

- A dúvida assola-o, então, pelo que me diz. – Retorquiu dona Eusténia. Rodara sobre o banco e agora estava de frente para o abade, braço direito em apoio sobre o balcão e, na mão, segurava o copo. De um trago, esvaziou-o. De seguida, com a esquerda, fez sinal ao funcionário a pedir que o voltasse a encher.

- A dúvida assola-nos a todos, minha querida. – Respondeu ele, agora num tom ligeiramente mais sério. – Mas eu tenho a certeza de que o que me diz serem desgraças não passarão de meros obstáculos da vida, pois a vida é cheia de…

- Então… – Interrompeu ela, com a voz já ligeiramente embargada pelo álcool. - Em quantos copos já vou? – Disse, mais para si. O abade ficou de boca meia aberta, não conseguia continuar o que dizia, nem sabia se tinha de dizer algo em resposta à pergunta dela. -  Um, claro. – Rematou ela. – É sempre o mesmo desde que cheguei! – Encarou o abade. – Pelo que me diz, a sua dúvida é uma certeza, pois está certo que duvida, ou, por outro lado, se entendi, duvida porque tem a certeza. O caro amigo é complexo, devo dizer…

- Mas conte lá, como vai a família? – O abade procurava mudar o rumo ao diálogo. O anterior não parecia dirigir-se para bom porto.

- Mal, como é óbvio. Daí as desgraças.

- Então e o seu irmão? Aquele fantástico pescador de alto mar, que é feito dele?

- Está no reino de Neptuno. É a ironia da vida, meu caro abade, fartou-se de comer peixes e agora os peixes fartam-se de o comer. - A tez do abade franzia-se. Para que lado se virasse, a conversa enveredava sempre por um mau caminho. – Diga-me lá, caro abade, acredita na reencarnação? – O abade encolheu os ombros e abriu ligeiramente a boca, como se fosse responder, mas ela continuou. – O meu irmão acreditava. Se reencarnar em peixe vai ser o cúmulo da ironia! – E, novamente, esvaziou o copo. Mal o pousou no balcão, o funcionário voltou a enchê-lo.

- Pelo menos o seu marido continuará a gozar de boa saúde, presumo?

- Se quer que lhe diga, não faço ideia…

- Como assim? Não o vê todos os dias?

- Desde que saiu de casa para ir viver com outro homem, não.

- Não pode ser! – Disse o abade.

- Pois, mas foi. Doze anos de casamento de mentira, é o que foi. – E, de um trago, esvaziou novamente o copo.

- Ó minha amiga, não beba assim. – Exclamou o abade, fazendo sinal ao funcionário para não voltar a encher o copo. – Mas confrontou-o com o erro da decisão dele?

- Sim, confrontei-o. Perguntei-lhe porque tinha esperado tanto tempo para aceitar ser quem realmente era.

- E o que ele lhe disse? – Perguntou, já sentado quase em meio banco, aproximando-se dela.

- Nada. – Respondeu. – Nem uma palavra. Nada respondeu. Limitou-se a virar-me as costas e a sair. – Dona Eusténia colocou a mão esquerda no obro do abade. – Não acha que eu lhe devia ter espetado o cutelo de partir os ossos no meio das costas?

- Deus nos livre! – Exclamou o abade. O suor brotava-lhe na testa. Ela soltou uma gargalhada.

- Havia de ver a sua cara! – Dona Eusténia estava perdida de riso, daquele tipo de riso que se alicerça no sono e no álcool. - Acha que eu era mulher para fazer isso?

 - Acho que não. – Respondeu ele.

- Pois olhe que se engana, olhe que se engana…

- Não me diga que…

- Se não quer que diga, não digo…

O abade engoliu em seco. Por um momento, olharam-se em silêncio. Ele procurava sinais de resposta no rosto dela. Ela sorria levemente, mas ele não conseguia determinar se era álcool ou sarcasmo. O abade endireitou-se, virou-se para o balcão e fez sinal ao funcionário.

- Saia mais um copo!

 

[Texto d'"A Velha Escrita" sob os temas "No Reino de Neptuno / Nada: respondeu / Saia mais um copo! / Reencarnação / Não pode ser, disse o abade! / Dúvida / Deus me/nos livre!"]

Texto da sessão de 08/05/2024 da "A Velha Escrita"

Ainda ontem era Natal.

O tempo foge-me entre os dedos. O que quero fazer, não faço. Tento, mas não consigo. Os dias voam. Não sei para onde foram estes primeiros meses e nada do que me decidi fazer, naquela ébria passagem de ano, foi feito. Talvez tenha elevado demasiado a fasquia, talvez o que procuro não dê para encontrar.

Já estamos quase, quase a meio do ano e nada avança, a não ser os ponteiros, ou os números, dependendo se é o relógio analógico de pulso ou o digital da mesa de cabeceira. O relógio não para e o calendário atormenta-me.

Mas o tempo é relativo.

Partiste nessa passagem de ano. Um ano fora, disseste. Passa rápido, disseste. Mas não passa. O tempo arrasta-se. Os dias teimam em passar devagar e dos meses nem falo.

Já me torço e retorço enquanto espero o teu retorno e já desespero que tu não chegas. Não aguento mais esta espera.

Ainda estamos quase, quase a meio do ano e eu conto os minutos, um a um, no tic-tac do ponteiro, ou no lânguido deslizar dos números, dependendo se é no relógio analógico de pulso ou no digital da mesa de cabeceira.

O relógio não anda e o calendário atormenta-me.

Perco-me neste paradoxo. O tempo foge e não faço o que devo fazer, o tempo urge, para resolver o que tem de ser resolvido, e o tempo arrasta-se, lentamente, como uma lagarta numa folha de couve num dia de sol, para te ter de volta aqui.

Dê por onde der, passe o tempo rápida ou lentamente, nada altera o facto de estarmos quase, quase a meio do ano.

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "Quase, quase a meio do ano"] 

Texto da sessão de 10/04/2024 da "A Velha Escrita"

Há verdades incontornáveis da vida. Se eu fosse rico, não era pobre. Tenho dito. Com esta premissa em mente decidi singrar no mundo dos negócios, vender a alma ao Diabo e ser um empresário de sucesso.

Azar dos azares, acabei por concluir que a minha alma não vale nada. O Diabo não me apresentou nenhuma oferta por ela. Cansado de esperar, coloquei-a a leilão entre os demónios de segunda escolha. Nem assim tive sucesso. Quando o tédio da espera me invadiu, fui obrigado a aceitar, a “dar a mão à palmatória”, como diz o povo. O meu sucesso na venda daquilo que, dizem uns, é a essência do meu ser, ou melhor, o meu insucesso nessa venda, decretou o meu fado. Via-me obrigado a..., a palavra estava atravessada na minha garganta e provocava-me arrepios de suor frio. Mas era imperativo que a deitasse para fora, que a enfrentasse. Que assumisse que era a palavra de ordem para, no futuro, não voltar a dizer “se eu fosse rico”. Era a palavra do meu desencanto, do meu martírio, de tudo o que repudiava na vida. Via-me forçado a..., e aqui vai ela, seja o que Deus quiser... Espera, e se Ele, ao menos, quisesse a minha alma? Hesito. Medito, como quem diz, penso. E se eu vender a minha alma a Deus, terei mais sucesso? Conseguirei a fortuna que procuro?

Dedico mais uma jornada a publicitar o meu negócio em todas as igrejas por onde passo. Os padres querem-me convencer que Deus não compra almas, que apenas as recolhe quando as mesmas se mostram dignas, mas eu não vou nessa cantiga. Com tanta gente má no mundo, deve estar com fraca colheita e, com alguma sorte, faço negócio. Raios! Uma alma eterna, sem prazo de validade, só pode ser um bom artigo para ser comprado por uma divindade.

O desespero já me corrói. Quem diria que Deus era tão forreta. Aceito, ou melhor, acato as palavras dos padres. Deus só aceita borlas, nada de compras, isso é do foro do Diabo.

“Se eu fosse rico” é a frase que me continua a atormentar. Se, se, se. Maldita palavra de duas letras. Uma palavra tão pequena e com um poder tão grande.

Regresso à única palavra que me pode salvar, a única que pode transformar um “se” na inexistência dele mesmo. A palavra que já transitou da minha garganta para a ponta da língua. Cerro os dentes com toda a força que o meu maxilar consegue providenciar. Ouço os molares a ranger e os caninos estalam. Não desarmo, não posso, não concebo esta palavra ser solta pela minha boca. Depois de tal passo, não há voltar atrás, não há regresso ao desconhecimento. Ser-me-á impossível “desouvir”, se é que tal palavra existe.

O suor escorre-me pela testa e arde-me nos olhos. Vai-me ser impossível aguentar, a minha boca não resiste, embora combata, estoicamente, as investidas desta palavra maldita.

E eis que ela sai, explode, envolve-me e martela-me nos ouvidos.

- Vou ter de trabalhar! – Grito no tom mais alto que os meus pulmões me permitem.

Pronto, está feito. O ponto sem retorno foi atingido.

- Para deixar de dizer “se eu fosse rico”. – Digo, para quem passa. – Vou ter de trabalhar.

E quem passa responde.

- Ninguém enriquece a trabalhar. Mais vale vender a alma ao Diabo.

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "Se eu fosse rico"]

Texto do desafio da sessão de 06/05/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Quarto crescente"

  Movo-me levemente na poltrona. Esta parece moldar-se ao meu corpo. São muitos anos de uma amizade que nos une. Conhece todos os contornos...