quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Texto do desafio da sessão de 04/11/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Depois de Mim"

 

— Depois de mim? Depois de mim virá alguém. Não me perguntem quem. 

Sentou-se e olhou para a plateia. Quem lançara a pergunta que silenciara a sala encontrava-se de pé. Ele dera a resposta que solidificara esse silencio. Todos os olhos se agarravam ao fato cinzento, à camisa azul e à gravata cinza-azulada do homem que olhava em volta com a boca ligeiramente aberta. Parou o olhar em cima do palco. Na cadeira. Naqueles olhos que lhe questionavam o que tencionava fazer. Falar, sentar ou sair, a escolha era dele. Decidiu sentar-se. 

Enquanto eu aqui estiver, não vale a pena questionar quem virá depois de mim.Levantou-se. Caminhou cabisbaixo ao longo do palco. Mãos atrás das costas. Deu meia-volta e regressou para o pé da cadeira. Apenas se ouvia o zumbido das moscas, um esporádico estalo de quem tentava matar alguma, e o raspar da sola dos sapatos de pele dele contra a madeira do palanque. 

— Bom. — Rodou sobre os pés, ficando de frente para os presentes. Os rostos revelavam incertezas, receio do que estava para vir. A decisão a tomar impunha-se, mas os olhares espelhavam dúvida. — Apresentados que estão os argumentos, uma decisão terá de ser tomada. 

Agarrou uma mão com a outra, por trás das costas. Erguia e baixava os calcanhares, de forma ritmada, enquanto aguardava alguma reação. 

— Ninguém tem nenhuma proposta? Nenhuma resolução? Nada? 

Ouviram-se sinos. Ao fim de uma dúzia de badaladas, a porta do salão abriu-se com estrondo. Por ela entrou um homem. As calças de ganga e a camisola de gola alta denunciavam a juventude. No rosto, a barba rasa, negra, e o cabelo farto a combinar, contrastavam com a brancura e raridade do cabelo do homem que estava diretamente à sua frente, ao fundo do corredor. 

— Eu sou a resposta, e a resposta a essa pergunta sou eu. 

— E você quem é? — questionou o homem mais velho. O tom de voz mostrava o aborrecimento que sentia por aquela interrupção. 

— Eu sou quem vem depois. 

Depois de mim? 

— Sim. Depois de ti. 

O velho desceu os dois degraus e avançou em direção ao novo. 

— Já está na hora? 

— Está — respondeu o novo. — Não ouviste os sinos? 

— Já não ouço assim tão bem, sabes. 

Aproximou-se do novo. Parou por um momento a olhar para ele. Recordava-se de quando entrara assim, de rompante, com toda aquele energia e força. Virou os olhos para o chão e seguiu caminho, saindo da sala. 

O novo fechou as portas, inspirou fundo, e dirigiu-se ao palanque. 

— Bom — disse, virando-se para a plateia. — Então, quais são as resoluções que têm para mim? 

Texto do desafio da sessão de 07/10/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Cair da Folha"

 

Anastácio aguardava ansiosamente. O banco de madeira em que o haviam sentado de confortável não tinha nada. Esperava num corredor comprido de um edifício antigo. O pé direito do espaço daria para construir um edifício de dois andares moderno. Ouvia o ranger de portas. Velhas dobradiças secas que se lamentavam dos anos de vida e de trabalho monótono. Os candeeiros vomitavam uma luz amarela que se refletia nas partículas de pó que pairavam a toda a volta. Pessoas atarefadas passavam por ele, carregadas de livros, papeis e dossiês. Ele levantava a mão, timidamente, mas, mesmo assim, continuava invisível para aquelas pessoas extremamente atarefadas que lhe pareciam querer adiantar a conversa por vários dias, para depois poderem trabalhar sem interrupções. A cadeira abanava com todo este trânsito. O soalho juntava-se ao coro de lamentos das dobradiças e oscilava a cada passo. 

Olhou para a esquerda. No fundo do corredor avançava, em passo rápido, uma rapariga. Não devia ter mais de 20 anos. Pela forma como se comportava, ainda deveria ser estagiária. Nas mãos carregava uma quantidade desmesurada de papeis. Tantos que ele só lhe via a cintura, as mãos e o topo da cabeça. A meio do corredor, com a deslocação de ar da passada, uma folha deslizou do meio do monte e esgueirou-se por baixo da porta do armário dos produtos de limpeza. Anastácio recordou-se logo da senhora mal-encarada que lhe ralhara para levantar os pés do chão. 

Se está no chão, vai para o lixo, está a ver? Dissera ela. Não quer que lhe deite os pés fora, pois não? 

Ele elevara os pés, segurando as pernas por baixo dos joelhos, e aguardara que ela passasse a esfregona. Mesmo depois de ela desaparecer, ainda aguentou naquela posição mais um bocado. Quando finalmente se convenceu de que ela não iria voltar, relaxou. 

A estagiária virou em direção à porta à esquerda dele, e entrou. Ele pode-lhe ver o rosto vermelho e os cabelos negros, lisos, colados ao rosto pelo suor que lhe escorria pela cabeça. 

Pouco depois foi chamado a entrar. Cumprimento para aqui, cumprimento para ali. 

— Vamos ao que interessa, que não tenho muito tempo disponível disse a doutora, batendo com as palmas das mãos no topo da pilha de papeis que tinha à frente. Então, o que o traz por cá? — Continuou ela. Anastácio elevou-se ligeiramente e abriu a boca. Ela levantou a mão com a palma virada para ele, petrificando-o. Manteve-se assim uns segundos e depois deixou-se cair. 

O senhor está em “maus lençóis”, me parece dizia ela. Anastácio só abanava a cabeça e apertava a boina que mantinha agarrada com as duas mãos. 

Papel para um lado, papel para o outro. A princípio a sua interlocutora estava descontraída, mas, com o passar do tempo, e o folhear de papeis, começou a ficar enervada. Os movimentos suaves deram lugar a movimentos bruscos. Continuou nessa dança até dar um murro na mesa. 

Ao que parece, afinal o seu caso não existe. Deve ter havido aqui algum engano. Ele olhou para ela, sem compreender muito bem o que ela lhe estava a dizer. Homem — retorquiu ela, em tom áspero, vá-se embora, que aqui não há nada contra si, afinal. 

Anastácio levantou-se, fez uma vénia, e começou a recuar. 

Vá, vá disse ela, enxotando-o com a mão. — Vá-se lá embora, que, ou me engano muito, ou acabou por se safar ao cair do pano. 

Foi mais ao cair da folha retorquiu Anastácio, com um sorriso, e fechou a porta. 

Texto do desafio da sessão de 04/11/2025 d'A Velha Escrita, com o tema "Depois de Mim"

  — Depois de mim? Depois de mim virá alguém. Não me perguntem quem.   Sentou-se e olhou para a plateia. Quem lançara a pergunta que silenci...