ROUPA LAVADA E FIM DE TARDE
"A vida é dura, mas é boa". As palavras
da avó enchiam-lhe a mente. Perdera a conta às vezes que a ouvira dizer esta
curta frase. De pequena, apenas sorria quando o rosto enrugado e envelhecido da
avó estava frente ao seu e lhe dizia, de quando em vez, "a vida, minha
pequena, é dura, mas é boa". Desses tempos, o que recordava, o que lhe
ficara impresso na mente como uma fotografia, era o brilho dos olhos dela, um
sorriso tão verdadeiro, tão cheio de ternura e genuína felicidade, como ela
nunca vira em mais ninguém. Na casa da avó, naquela aldeia perdida no monte,
conhecera apenas a alegria de correr livremente, de ficar na varanda a ver o pôr-do-sol,
de colher as flores silvestres e de, com elas, fazer coroas para brincar às
princesas.
Estava de volta, depois de tantos anos,
depois da escola, da universidade, dos amores e desamores, do trabalho, dos
filhos, dos dias que passam a correr. Reencontrava o sossego, a vida que
passa devagar, o cheiro do campo e do monte, dos animais que passam, do gato
que se espreguiça em cima do muro, das flores que abanam ao vento e que
espalham o seu aroma no ar, aroma que a envolve numa doçura que nunca
encontrara no mundo cinzento da cidade. Tudo isso lhe trazia recordações dos
tempos de criança, o poder dos cheiros que a rodeavam despoletavam-lhe memoria
atrás de memoria, mas o cheiro que lhe faltava, aquele de que mais falta
sentia, era o da roupa lavada, esticada no arame do pátio, onde se encontrava,
que a avó estendia ao fim da tarde.
Tinha saudades dos tempos de infância na casa da
avó, de, naquele pátio, a ajudar a estender os lençóis brancos, ao entardecer,
quando o sol já não queimava, de tocar no algodão macio e sentir aquele aroma
maravilhoso encher-lhe as narinas e os sentidos. Essas eram das memórias mais felizes que
tinha, mas, ao mesmo tempo, faziam parte de um todo que era a sua vida, uma
vida cheia de que não se arrependia, mesmo com as suas adversidades e tristezas,
tristezas de uma perda irrecuperável, mas também recheada de alegrias,
incluindo aqueles tempos de infância que agora recordava.
Não sabia porquê, mas inspirou fundo e disse
"vida, que posso dizer de ti?". A resposta veio em passos lentos e
incertos, numa voz fraca, mas ainda cheia da doçura de outros tempos, "a
vida é dura, mas é boa". Apesar do passar dos anos e do peso que tinham no
corpo envelhecido e franzino da avó, o brilho dos olhos permanecia com a mesma
intensidade de sempre. Pegou na mão dela e ficaram ambas, em silêncio, a
apreciar o pôr-do-sol, que encerrava mais um fim de tarde naquele pátio, desta
vez sem as roupas a agitar suavemente ao ritmo da brisa.
Agora, ali, a segurar aquela mão pequena e
franzina, calejada por uma vida de trabalho árduo, compreendia bem aquelas
palavras, compreendia a avó e, como ela, iria dizer aos seus netos, "a
vida é dura, mas é boa".
[Desafio aceite em 15/09/2023 sob o tema "Roupa lavada e fim de tarde"]
Comentários
Enviar um comentário