O CAÇADOR

«I am the hunter…». As palavras repetiam-se nos seus pensamentos.  «Eu sou o caçador...». Mas os tempos eram outros e as presas também. Caçava homens. O seu foco eram homens orgulhosos, endurecidos por longos anos de luta numa guerra que parecia não ter fim. Não eram os soldados que lhe interessavam. Perseguia, exclusivamente, as altas patentes, e, neste momento, uma em particular. Este oficial era tão importante que, se conseguisse cumprir a sua missão, poderia, apenas com uma bala, mudar o curso da guerra.
Sentiu a frescura do ar da manhã, os primeiros raios de sol começavam a despontar, antecipando a chegada do verão. Ao seu redor podia ver a bela paisagem da outrora gloriosa França, um país tão destroçado por uma guerra inútil e sem sentido, mas que, ainda assim, conseguia manter a sua singularidade e beleza. Os prados, antes verdejantes, estavam rasgados pelas crateras das bombas, e por trincheiras cavadas à pressa por um exército que tentara, por todos os meios, deter o avanço do exército alemão. Mas a máquina de guerra germânica, como um gigante de aço, triturava tudo na sua passagem. Privados de uma sepultura digna, corpos de soldados, dos dois lados do campo de batalha, jaziam misturados com os de animais apanhados no fogo cruzado. Eram soldados desconhecidos cujas famílias estariam a sofrer na incerteza pela falta de notícias.
Nos campos, agora silenciosos, mas para sempre impregnados de memórias de fumo e fogo, a única coisa que ouvia era o canto dos pássaros que preparavam os ninhos para mais uma época de acasalamento. Era extraordinário como os animais continuavam as suas vidas no meio da fúria infernal desencadeada por seres humanos inflamados pela ganância e pela obsessão pelo poder.
Centenas de quilômetros separavam-no de casa. Não acreditava no destino nem em Deus, mas teve de se curvar diante da terrível e perturbadora coincidência de o encontrar entre aqueles inúmeros corpos despedaçados, alguns já em decomposição e outros parcialmente comidos pelos lobos. Lobos que ouvia a uivar à noite, e que o acaso ainda não os fizera cruzar o seu caminho. Na sua frente jazia o corpo de um velho amigo. Uma amizade que remontava aos primeiros tempos de escola. Jack Lawrence, um indivíduo fantástico que merecia melhor sorte. Lembrava-se da família dele. Da doce mãe, sempre disposta a ajudar quem quer que fosse, do bom humorado pai, que trazia para casa uma piada nova todos os dias, e da pequena Sarah, que cresceu e tornou-se a rapariga mais bonita da cidade. Agarrou a corrente com os crachás que estava ao pescoço do corpo do amigo e puxou-a, arrancando-a. Decidiu guardá-la e, talvez um dia, conseguisse entregá-la à família. Não podia deixá-lo ali a apodrecer. Sepultá-lo era o mínimo que podia fazer. Devia-lhe isso. As memórias fluíam como uma torrente. Tantos planos, tantos sonhos, e tudo se perdera quando a vida lhe fora brutalmente ceifada por uma guerra absurda. Seria capaz de levar estas notícias tão dolorosas à família dele? Seria capaz de falar-lhes sobre o soldado corajoso que ele fora e como tombara em combate a defender a liberdade? E como viver com a dor que sentia bem no fundo do seu ser? Uma dor causada por ver os seus amigos tombarem, um por um, no campo de batalha. A vida ainda tinha algum sentido? O que o esperava quando regressasse a casa? Se é que algum dia iria regressar… E se regressasse, poderia fazê-lo para um lugar cheio de famílias destroçadas pela dor e pela tristeza, famílias que ele conhecera tão bem, famílias com as quais compartilhara alguns dos momentos mais felizes da sua vida? A dor nestes pensamentos era demasiada, teve de os afastar.
Sepultou o amigo no topo de uma pequena colina e, como o recordava como sendo uma pessoa profundamente religiosa, fez uma cruz de madeira para marcar o local, colocando o capacete dele no seu topo. Não tinha fé em nenhuma religião ou em nenhum Deus, mas sentia uma necessidade inexplicável de dizer algumas palavras, de falar com o Deus em quem o seu amigo tanto confiava e no qual acreditava.
- Deus, o meu bom amigo Jack deixou este mundo antes da hora, dando a vida para libertar pessoas que nunca conheceu e que nunca lhe agradecerão o sacrifício. Sim, eu sei que não era gratidão o que ele procurava. Era apenas um homem bom motivado por uma vontade irredutível de lutar pela liberdade, contra a opressão. Deus do Jack, se realmente existes, por favor, recebe o meu amigo de braços abertos, e abre-lhe as portas do teu Paraíso, a ele e ao seu coração de ouro do tamanho do mundo. – As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. As pernas cederam e caiu de joelhos, a soluçar. Quanto mais poderia aguentar? Quanto mais sofrimento e dor seria capaz de enfrentar?
Fechou os olhos, necessitava concentrar-se. Focaria toda aquela raiva que sentia, todo o medo que o assombrava e o desespero que o destroçava, no seu objetivo. Estranhamente, não procurava vingança. Sabia que quem matara o seu amigo estava apenas a cumprir o seu dever. Estava, como todos os outros, a lutar para sobreviver. Sabia que a sensação de estar envolvido numa guerra sem sentido também assombrava o exército alemão. Havia fanáticos nas suas fileiras, era verdade, mas muitos dos soldados eram apenas pessoas comuns, que tinham pai, mãe, irmãos ou irmãs, ou mesmo uma namorada ou esposa ansiosa que eles regressassem a casa. Estavam apenas a lutar para permanecerem vivos, não odiavam aqueles que lhes diziam ser os seus inimigos, só queriam paz e a possibilidade de voltarem a casa, para junto da família e dos amigos. Não, ele não procurava vingança, procurava as patentes mais elevadas, os psicopatas, os senhores da guerra, que se alimentavam da morte e da destruição e que estavam sempre a mandar os exércitos avançar, ficando atrás das linhas. Mas agora ele também estava atrás das linhas... «Eu sou o caçador», pensou mais uma vez, e concentrou-se nesse pensamento. «Eu existo para caçar, nada mais. Não sinto dor, nem tristeza, nem cansaço, sou um caçador e não vou parar até matar a minha presa». Ergueu-se e olhou para o túmulo do amigo, mantendo-se em silencio durante um momento.
- Adeus, Jack, viverás para sempre no meu coração e nas minhas memórias. Deixo-te aqui, agora. O dever chama. Tenho uma tarefa a cumprir e não posso falhar. Adeus, meu bom amigo. – E, dizendo isto, virou as costas ao túmulo e seguiu o seu caminho, sem olhar para trás. Sabia que nunca mais voltaria àquele lugar.
 
Finalmente conseguira encontrar o seu alvo. A paciência e perseverança começavam a dar frutos. O oficial encaminhava-se para uma pequena aldeia nos arredores de Paris, onde iria ficar de passagem. O importante agora era não o deixar fugir e terminar com a sua existência. Não sabia quanto tempo é que ele permaneceria naquele local, por isso, tinha de se movimentar rapidamente. Quando o oficial reiniciasse a marcha, seria muito difícil voltar a ter assim uma oportunidade.
A caminhada até àquele dia tinha sido dura. O sacrifício, enorme. Travara batalhas sangrentas onde amigos e camaradas tinham tombado. Lembrava-se do rosto de cada um. A morte de muitos era sangue que manchava as mãos deste oficial, e isso ainda o motivava mais para levar a cabo a missão. Usara a violência dos combates e a intensidade dos bombardeamentos de artilharia como escudo para se ocultar do inimigo e infiltrar as suas linhas. Mantivera-se oculto, deslocando-se silenciosamente e quase sempre com a cobertura da noite. Por mais de uma vez cruzara-se com patrulhas inimigas que puseram à prova a sua capacidade de ficar invisível, de fundir-se com o que o rodeava, fosse urbano ou natureza.
O objetivo estava perto. As dores que sentia no corpo e a fome que não o largava, parcialmente saciada com o pouco que conseguia recolher e as parcas rações de combate que tinha consigo, eram empurrados para o fundo da mente. A concentração na missão era agora o que dominava os seus pensamentos. A sua determinação estava mais forte que nunca.
“Eu sou o caçador” era o seu mantra. Repetia as palavras, mentalmente, uma e outra vez, ganhando ímpeto, aumentando a sua determinação, alimentada, também, pela dor e pela raiva que trazia consigo desde que vira a face da guerra na primeira pessoa. Nada o preparara para o horror que presenciou, desde esse dia. Antes de chegar ali, tinha a ideia de que a guerra era algo horrível e atroz, mas tudo o que alguma vez imaginou ficara muito aquém da verdade que encontrou. Aquelas imagens iriam assombrá-lo o resto da vida, caso sobrevivesse àquele inferno. Nesse momento, no entanto, não era sobreviver que o preocupava, era completar a missão.
Há mais de duas horas que se encontrava deitado, oculto pelos arbustos, a poucos metros da entrada da aldeia. O nevoeiro que o ocultara tinha levantado antes de conseguir cruzar o terreno aberto que antecedia as primeiras casas. O recurso fora ocultar-se no mato alto e aguardar a passagem das patrulhas. Várias viaturas e soldados tinham percorrido aquela estrada, mas o movimento, que fora grande, começava a diminuir. Naquela hora de fim de tarde, apenas dois soldados caminhavam lentamente junto à estrada. Aguardava que passassem para a aldeia, como todos os outros, para mover-se. Manteve-se estático, controlando os movimentos deles mais pelos sons do que pela visão.  Subitamente, os soldados alteraram a sua marcha e caminharam na sua direção. Pelo tom animado da conversa, ele não era o motivo do desvio. Mesmo assim, estavam cada vez mais perto e arriscava-se a ser descoberto. Pararam a poucos metros do local em que se encontrava. Apenas algum mato mais cerrado, que o ocultava, os separava. Conseguia senti-los ao seu lado. Conversavam animadamente enquanto fumavam, demoradamente, um cigarro. O aroma do tabaco inundava-lhe as narinas. A descontração dos soldados dava a ideia de que a guerra não era mais do que uma memória relembrada pelas fardas e as armas que empunhavam. Manteve-se imóvel. A posição já lhe fazia doer todo o corpo, mas a sua vida dependia da sua capacidade de a suportar. A mão direita apertava o punho da faca de mato que trazia à cintura. No caso de ser descoberto, teria de a usar de forma rápida e eficaz. O ruido de um disparo seria o suficiente para atrair mais soldados, o que seria a sua condenação. Os soldados recomeçaram a sua caminhada, após acabarem de fumar, e regressaram à aldeia. Manteve-se imóvel, ainda durante um momento, depois de deixar de os ouvir. Avançou pelo campo, evitando a estrada, até chegar à primeira casa. A porta estava aberta e o interior destruído. Pelo seu estado devia ter sido abandonada há bastante tempo. Decidiu aguardar no interior pelo avançar da noite. Já tinha arriscado demasiado durante o dia e não queria esgotar a sorte.
 
As estrelas brilhavam no céu, por entre as nuvens que passavam, e só se ouvia o cantar dos grilos. Fez uma vistoria final ao armamento, abandonou tudo o que era desnecessário e que apenas lhe pesava na mochila, e iniciou a marcha. A aldeia estava quase deserta. Os habitantes não saíam das casas à noite e apenas alguns soldados andavam nas ruas. Podia ouvir o som das botas a baterem nas pedras da calçada e as vozes e gargalhadas. A segurança dos soldados alemães era tanta que já não se davam ao trabalho de serem silenciosos. O melhor ponto da aldeia para armar a emboscada era a torre da igreja. O problema seria sempre a fuga após a execução da missão. Só teria uma oportunidade, se a tivesse. Quando pressionasse o gatilho denunciaria a sua posição e teria os alemães no seu encalço. Era uma dualidade que tinha presente, o sucesso da missão opunha-se fortemente à sua sobrevivência. Isso não deteve os seus passos, a decisão já estava tomada, primeiro a missão e depois, se possível, escapar. Encolhia-se contra a parede das casas, em cada esquina. Na mão direita empunhava a faca de mato, mantendo-se sempre alerta para a eventualidade de ter de a usar. Por cima dos telhados podia ver o sino da igreja, iluminado por um luar que rasgava umas nuvens que, pela escuridão da noite, faziam lembrar carvão. O aproximar de soldados precipitou-o num beco. Escondeu-se na escuridão e esperou que passassem. Viu o grupo a passar, não podiam ser mais de três, mas um ficou para trás e entrou no beco. Podia-o ouvir a falar, mas não entendia uma palavra. Encolheu-se mais, controlando o aproximar do soldado. Pelos gestos percebeu que este procurava um lugar para urinar. Cada vez entrava mais no beco. Estava com as costas contra a parede do fundo, não tinha por onde escapar. O soldado continuou a avançar, não parecia encontrar um local que o satisfizesse. Encolheu-se ao máximo, retesou os músculos, e aguardou por ele. Teria de ser rápido e eficaz, se ele o visse e desse o alarme, era o fim. O coração batia-lhe aceleradamente. Sentia as têmporas a latejar, e o suor já começava a despontar na testa. Três metros… dois metros… Cada vez mais perto. Subitamente, o soldado parou a sua marcha. Uma fração de segundo era o tempo que teria para atuar, mas um movimento em falso seria o fim. Decidiu arriscar e não se mexer, embora não conseguisse ter a certeza que o soldado não o vira. Este olhou em volta, aproximou-se da parede e urinou. Pouco depois regressou à rua e seguiu atrás dos camaradas. Expirou fundo. A tensão passara. Manteve-se no esconderijo por mais uns momentos, precisava recuperar, sentia as mãos a tremer ligeiramente. O silencio retornou às ruas, era o momento de avançar. A hora já ia avançada, o nascer do sol deveria ser dali a pouco menos de duas horas. Precisava de assegurar o ponto alto para conseguir controlar o alvo. Com a alvorada viria um incremento da atividade na aldeia, as areias da ampulheta estavam-se a esgotar. Dobrou uma esquina e subiu uma rua, pé ante pé. Mantinha-se alerta para todos os sons que o cercavam. O silêncio era o seu melhor amigo. Na sua frente estava a praça que se estendia de fronte à igreja. O luar incidiu sobre o templo e refletiu-se no seu interior, a porta estava aberta. Apesar de não fazer muito sentido, não pensou no assunto. Estava demasiado focado no seu objetivo e aquela era a única forma de o alcançar. Susteve a respiração, fechou os olhos, e concentrou-se na audição. Perscrutou o silêncio à procura de sons que denunciassem a presença de soldados. Apenas sons da natureza perturbavam a noite. Estava confiante, só lhe faltava cruzar o átrio da igreja e subir à torre. Avançou rápida e silenciosamente. O centro da praça já estava a dois passos, não tardaria nada iria trocar aquela área exposta pela segurança da igreja. Os olhos subiram ao topo da torre, onde um sino refletia a luz da Lua. Podia ver o espaço vazio onde outrora outro sino se encontrara. Parou, nesse espaço vazio algo se movera, parecera-lhe ver um reflexo.
Os seus olhos vislumbram um relampejo. Um estrondo rasgou o silêncio, seguido de um assobio. Tudo parecia acontecer em câmara lenta. Sentiu o impacto no corpo. As pernas falharam-lhe e tombou de joelhos nas pedras nuas e gastas da calçada com um baque surdo. O sangue escorria-lhe de uma ferida no peito. O segundo impacto dilacerou-lhe o cérebro. A morte foi imediata.
 
«Ich bin der Jäger...». As palavras repetiam-se nos seus pensamentos.  «Eu sou o caçador...». Do cimo da torre podia ver o corpo da sua presa estendido na praça. O cano da arma ainda fumegava.

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