Texto da sessão de 06/03/2024 da "A Velha Escrita"

Podia dizer que a meteorologia estava a ajudar. A chuva fizera uma pausa naquele dia e isso permitia-lhe o prazer da caminhada noturna. Era uma casualidade do destino, obviamente, mas não podia deixar de se sentir com alguma sorte. O frio apertava mais naqueles dias que nos anteriores. Março ainda não trazia a promessa da Primavera. O fevereiro despedira-se há pouco e deixara marcada a sua presença. Saiu de casa. O dia de trabalho tinha sido exigente e fazia bem apenas caminhar esvaziando os pensamentos de toda a carga negativa que trouxera para casa. Mesmo assim, algo se mantinha presente, aninhado ali para os lados da nuca. Uma ideia, uma sensação, como se algo estivesse em falta. A meio do trajeto questionava-se, “do que me esqueci?” Era como se as palavras quisessem sair, mas estavam trancadas atrás de uma porta e a parte sarcástica da sua mente é que detinha a chave.

A noite estava agradável, a luz da cidade banhava as ruas, esburacadas, como era tradição. Felizmente, hoje o que o levava no trajeto era um par de sapatilhas e não quatro rodas condenadas a ter encontros imediatos do terceiro grau com os ditos buracos.

Esta incerteza que, a princípio, era apenas um pequeno ponto negro lá longe, nos confins da sua mente, começou a crescer. Escondera-se por trás da preocupação que se assomou ao consciente, por vias de uma consulta ao relógio.

“Raios! Estou a ficar atrasado.” Pensou. A caminhada teria de deixar de ser idílica para se tornar numa pequena corrida contra o tempo. Pequena porque não deixava de ser uma caminhada. Isso de correr ficara encalhado nos tempos de juventude.

O seu destino já se encontrava visível. Contava os passos até à porta. Os pensamentos enrolavam-se entre “Estou atrasado”, “17, 18, 19”, “Tenho a nítida sensação que me esqueci de alguma coisa”, “27, 28, 29”, e “Para que raio estou a contar? Pareço um puto”.

- Boa noite. – Cumprimentou todos, à chegada, após subir, não literariamente, uma eternidade de lanços de escadas. – Desculpem o atraso.

- Não te preocupes. – Responderam os outros. – Senta-te e escreve a tua proposta de tema para a tertúlia de hoje.

- Ó raios! – Exclamou. – É isso que me falta! E agora, que faço? Não tenho nenhum!

- Devias ter pensado nisso antes de sair de casa.

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "Devias ter pensado nisso antes de sair de casa"]

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