Texto da sessão de 07/02/2024 da "A Velha Escrita"

Estava um nevoeiro de cortar à faca. não via um palmo à frente do nariz. Não é que o nevoeiro o incomodasse, era mais o não conseguir ver. Já de si era difícil ver o caminho à noite, mas assim, era um tormento. Dava um passo de cada vez, olhando atentamente onde punha os pés. Costumava dizer que conhecia o bosque como a palma da mão, mas agora parecia-lhe que a mão afinal tinha sido sempre difusa. Era uma maldita vida, de manhã à noite, de um lado para o outro, naquele caminho. Curiosamente, sempre achara que conhecia cada curva, cada pedra daquele trilho, mas, na primeira vez que caiu aquele nevoeiro de cortar à faca, todo o seu conhecimento parecia que se tinha esfumado. “Maldita expressão”, pensou. Se fosse verdadeira, estava resolvido, a faca estava ao cinto e até se considerava bastante exímio no seu manuseamento. Como é que iria conseguir trabalhar assim? O dia tinha sido frouxo e ele apostara na noite para o remediar. Era uma sexta-feira, costumava ser rentável.

 

Ouviu vozes de gente que avançava na sua direção. Afinal não estava sozinho. Ficou atento, as vozes calaram-se, mas conseguia ouvir os passos. As pessoas eram sempre muito barulhentas a passar ali. Contou dois. Aguardou pacientemente e quando os passos chegaram à sua beira, agarrou no primeiro e encostou-lhe a faca ao pescoço.

 

- Creio que será melhor aliviares-te dos teus pertences, a não ser que queiras sentir a minha faca.

 

O indivíduo olhou para ele com alguma indiferença, o que estranhou. Após uma mais atenta observação reparou que ele tinha o olho esquerdo inchado e algum sangue a escorrer do sobrolho e de um lábio rasgado. Apalpou-lhe o braço até chegar às mãos. Estavam fortemente atadas com uma corda.

 

Aquilo era muito estranho, mas ele não era pessoa de sentir medo, sempre saíra por cima em todas as situações e aquela não seria exceção. Agitou a faca no ar e gritou, num tom desafiador.

 

- Eu tenho uma faca!

 

O indivíduo, que continuava a olhar para ele com indiferença, respondeu.

 

- A dele é bem maior.

 

A dor foi lancinante, mas nem um som lhe saiu da boca. O aço queimava-lhe as entranhas, dilacerando-lhe o baço. Pouco depois deixou de ver, mas não por culpa do nevoeiro. Caiu redondo no chão. O ar saiu-lhe dos pulmões, mas já nada o fazia voltar.

 

- É como te digo. – Disse o segundo indivíduo, enquanto limpava a lâmina. – Tudo é de cortar à faca.

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "De cortar à faca"]

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