UM MINUTO
Um acaso, num dia como outro qualquer, revelou-lhe essa verdade. Estava junto à estrada, à porta de casa, quando um cão de pequeno porte passou por ele e se lançou em corrida a atravessar a rua. Sentiu-se impotente quando um carro em excesso de velocidade colheu o pequeno animal, matando-o instantaneamente. Seria ele assim tão impotente para prevenir aquela morte? Reagiu por reflexo, dir-se-ia mesmo de forma instintiva. Recuou no tempo e, quando o cão se cruzou com ele, agarrou-o. Aguardou que o carro passasse e atravessou a rua, com o animal ao colo, libertando-o no passeio do outro lado.
Nesse dia descobrira, por um acaso do destino, que era capaz de recuar no tempo um minuto. Não era bem um minuto, mas aproximava-se. Nunca o medira. Poderia tê-lo feito, recuando a olhar para um relógio. No entanto, a especificidade cronológica da sua capacidade nunca lhe espicaçou a curiosidade. Definira, mentalmente, que era um minuto e não voltou a pensar no assunto.
Nos primeiros tempos, após a descoberta, divertira-se a usar o seu poder. Sentia-se quase como um dos muitos super-heróis que povoam o imaginário coletivo. Nos jogos de futebol com os amigos, recuava para conseguir adivinhar jogadas e antecipar-se aos restantes, rindo-se para si do espanto estampado nos rostos que o rodeavam.
Mas cedo descobriu que o seu poder vinha com um preço. Por cada minuto recuado envelhecia um ano. Não podia afirmar com absoluta certeza que era um ano, mas, assim lhe parecia, e assim definiu, mentalmente, a relação. Um minuto, um ano.
Abandonou por completo o seu poder, remetendo-o ao esquecimento, quando conheceu a Maria João. Não diria que fora amor à primeira vista, mas, a partir desse dia, ambos procuram aproximarem-se um do outro. Daí até iniciarem uma relação foi um curto espaço de tempo. Abandonou-o porque queria viver todo o tempo que o destino lhe reservara com ela. Nem todos os dias da vida a dois eram felizes, mas, no grande esquema da vida, Maria João convertia-se, cada vez mais, na sua razão de existir.
Amantes das viagens, do mar e da fotografia, passeavam o mais que podiam, percorrendo trilhos de norte a sul, procurando paisagens para fotografar e se deleitarem com a sua beleza.
Essa vida levou-os ao Algarve, e às suas praias de altas falésias, do topo das quais podiam admirar o mar.
Num dia, como outro qualquer, e como centenas de anteriores, caminharam por cima das arribas algarvias e admiraram a paisagem. Maria João chegou-se à borda e pediu-lhe uma fotografia. Queria ser enquadrada, numa imagem, com o sol baixo e o reflexo de prata nas águas calmas do oceano. No momento do disparo, a terra cedeu e Maria João precipitou-se no vazio. Sem apoio debaixo de si, apenas a esperava uma morte certa nas rochas, ao fundo.
Recuou um minuto. Ato reflexo, imediato, e acorreu ao seu salvamento, mas apenas conseguia chegar a centímetros da mão dela antes da queda. Voltou a recuar, e voltou, e voltou, mas era escusado, nunca lhe conseguia agarrar a mão.
A compreensão desta realidade veio acompanhado de uma decisão. Recuou sucessivamente. Quantos anos de vida lhe restavam, não sabia, mas de bom grado trocava cada um deles por um minuto com ela.
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