Texto da sessão de 03/04/2024 da "A Velha Escrita"

Há verdades incontornáveis da vida. Se eu fosse rico, não era pobre. Tenho dito. Com esta premissa em mente decidi singrar no mundo dos negócios, vender a alma ao Diabo e ser um empresário de sucesso.

Azar dos azares, acabei por concluir que a minha alma não vale nada. O Diabo não me apresentou nenhuma oferta por ela. Cansado de esperar, coloquei-a a leilão entre os demónios de segunda escolha. Nem assim tive sucesso. Quando o tédio da espera me invadiu, fui obrigado a aceitar, a “dar a mão à palmatória”, como diz o povo. O meu sucesso na venda daquilo que, dizem uns, é a essência do meu ser, ou melhor, o meu insucesso nessa venda, decretou o meu fado. Via-me obrigado a..., a palavra estava atravessada na minha garganta e provocava-me arrepios de suor frio. Mas era imperativo que a deitasse para fora, que a enfrentasse. Que assumisse que era a palavra de ordem para, no futuro, não voltar a dizer “se eu fosse rico”. Era a palavra do meu desencanto, do meu martírio, de tudo o que repudiava na vida. Via-me forçado a..., e aqui vai ela, seja o que Deus quiser... Espera, e se Ele, ao menos, quisesse a minha alma? Hesito. Medito, como quem diz, penso. E se eu vender a minha alma a Deus, terei mais sucesso? Conseguirei a fortuna que procuro?

Dedico mais uma jornada a publicitar o meu negócio em todas as igrejas por onde passo. Os padres querem-me convencer que Deus não compra almas, que apenas as recolhe quando as mesmas se mostram dignas, mas eu não vou nessa cantiga. Com tanta gente má no mundo, deve estar com fraca colheita e, com alguma sorte, faço negócio. Raios! Uma alma eterna, sem prazo de validade, só pode ser um bom artigo para ser comprado por uma divindade.

O desespero já me corrói. Quem diria que Deus era tão forreta. Aceito, ou melhor, acato as palavras dos padres. Deus só aceita borlas, nada de compras, isso é do foro do Diabo.

“Se eu fosse rico” é a frase que me continua a atormentar. Se, se, se. Maldita palavra de duas letras. Uma palavra tão pequena e com um poder tão grande.

Regresso à única palavra que me pode salvar, a única que pode transformar um “se” na inexistência dele mesmo. A palavra que já transitou da minha garganta para a ponta da língua. Cerro os dentes com toda a força que o meu maxilar consegue providenciar. Ouço os molares a ranger e os caninos estalam. Não desarmo, não posso, não concebo esta palavra ser solta pela minha boca. Depois de tal passo, não há voltar atrás, não há regresso ao desconhecimento. Ser-me-á impossível “desouvir”, se é que tal palavra existe.

O suor escorre-me pela testa e arde-me nos olhos. Vai-me ser impossível aguentar, a minha boca não resiste, embora combata, estoicamente, as investidas desta palavra maldita.

E eis que ela sai, explode, envolve-me e martela-me nos ouvidos.

- Vou ter de trabalhar! – Grito no tom mais alto que os meus pulmões me permitem.

Pronto, está feito. O ponto sem retorno foi atingido.

- Para deixar de dizer “se eu fosse rico”. – Digo, para quem passa. – Vou ter de trabalhar.

E quem passa responde.

- Ninguém enriquece a trabalhar. Mais vale vender a alma ao Diabo.

 

[Texto d' "A Velha Escrita" sob o tema "Se eu fosse rico"]

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